Na primeira vez em que Clarice Lispector assistiu a um show de Maria Bethânia (“Rosa dos ventos”, em 1971), a escritora disse a ela, no camarim, que viu “faíscas, faíscas no palco”. Tempos depois, quando Bethânia conheceu Mãe Menininha do Gantois e prestou a tradicional saudação do Candomblé, inclinando-se até o chão com a testa encostada, como manda o rito, ouviu da ialorixá: “faísca, quanta faísca é essa, menina”. Na noite deste sábado, quem esteve presente na estreia da turnê comemorativa dos 60 anos de carreira da intérprete, no Vivo Rio, pôde sentir o mesmo: a santamarense de 79 anos soltou faíscas do início ao fim do espetáculo, que durou 1h30.
Se, depois da pandemia de Covid-19, Bethânia rodou o país em festivais e, em seguida, em grandes arenas com o “mano Caetano”, sempre com repertório de sucessos (um pot-pourri de hits), desta vez ela decidiu voltar às origens que a consagraram: casas menores, músicas inéditas, trechos de poemas e textos, um pensamento organizado, com início, meio e fim, sobre o Brasil, o palco e a vida. Para quem conheceu Bethânia nos últimos anos, este show é uma ótima oportunidade para desconhecê-la — ou então conhecê-la melhor, com o “lado B” incluso. Às 19h12, com apenas 12 minutos de atraso, a baiana entrou no palco, depois dos três backing vocals entoarem trechos de “Iansã”.
Vestindo um conjunto branco de calça e blusa que mais parecia um longo vestido e com os tradicionais cabelos soltos, Bethânia abriu o show com “Sete mil vezes”, de Caetano — e portando um microfone sem fio, diga-se de passagem. Ao terminar essa primeira canção, foi aplaudida fervorosamente. Ostentando ”a voz de uma pessoa vitoriosa” (com seu timbre grave, cujas qualidades vocais o tempo não deteriora, mas acentua), Bethânia celebrou a passagem dos anos que a trouxeram até aqui, como era esperado, mas de forma original e não cronológica. Emendou em “Canções e momentos”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, e “Gás neon”, de Gonzaguinha.
A forma da cantora enxergar o Brasil começou a surgir em seguida, com a sequência de “Podres poderes”, canção do irmão que não cantava desde os anos 1980, um trecho recitado de “A queda do céu”, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, “Ofá” e “Kirimurê”. Essa, afinal, desde sempre foi sua forma de dizer o que pensa: cantando.
Do histórico “A cena muda” (1974), dirigido por Fauzi Arap, Bethânia incluiu “Resposta”, de Maysa, “Demoníaca”, de Sueli Costa e Vitor Martins, e “Taturano”, de Caetano e Chico de Assis — a letra desta última, dificil, estava na ponta da língua da intérprete, que a cantou com fluidez.
No momento mais “lado A” do show, Bethânia emendou “Cheiro de amor” (para o delírio dos fãs, que pediam há anos que ela incluísse a música nos setlists), “Olha” (atualmente na trilha do remake de “Vale tudo”) e “Samba do grande amor”, de Chico Buarque. Neste momento, a plateia soltou a voz sem medo e cantou junto, em uníssono.
O fado “Se não te vejo”, do português Pedro Abrunhosa, rendeu um dos momentos mais simples e bonitos do show: a voz de Bethânia, acompanhada somente pelo bandolim do maestro Jorge Helder.
Depois de sair rapidamente do palco, Bethânia voltou com um adorno no figurino, uma espécie de colete feito de pedrarias douradas. Com os focos de luz, a cantora brilhava, literalmente, enquanto cantava “Tocando em frente” e “Fé cega faça amolada” — também com a ajuda da plateia.
Outro grande momento do show foi a dobradinha de canções de Angela Ro Ro: “Mares da Espanha” (que, na voz de Bethânia, parecia ter sido escrita para ela) e “Gota de sangue” (acompanhada somente pelo piano), gravada por ela no disco “Mel” (1979).
Com um trecho de Eucanaã Ferraz e seguido por “Sussuarana”, música gravada com Nana Caymmi em “Brasileirinho” (2003), Bethânia homenageou a amiga. Em seguida, num dos momentos mais aguardados da noite, homenageou outra amiga, Rita Lee, com a inédita “Palavras de Rita”, deixada pela artista especialmente para a baiana.
— Rita Lee deixou uma letra poema com um pedido: que eu a cantasse. Entregou à minha voz seus pensamentos, reflexões e lucidez. Pediu que o Roberto, seu amor e parceiro, musicasse. Comovida, realizo o desejo dessa artista imensa — disse, antes de cantar.
Mas foi “Rosa dos ventos”, de Chico Buarque, que rendeu o momento mais catártico da noite. Em estado de graça, Bethânia entregou uma interpretação cheia de força. O momento foi correspondido pelo público, que a aplaudiu de pé, calorosamente.
Do “Opinião” que a lançou ao estrelato, e que marca oficialmente o princípio dessas seis décadas que agora são merecidamente celebradas, Bethânia só cantou “Diz que fui por aí”, de Zé Keti e Hortêncio Rocha. Antes de sair do palco, no entanto, ao fim de “Vera cruz”, inédita de Xande de Pilares, a intérprete entoou um verso de “Carcará”, canção indissociável de sua voz e de sua história: “Pega, mata e come”. Ela voltou, a pedido do público, para um bis — que teve o samba “Maria Bethânia, a menina dos olhos de Oyá” e “Reconvexo”. A noite terminou com gritos de “Sem anistia” vindos da plateia.
Com mais esta estreia, a intérprete provou — não que precise, mas provou —, mais uma vez, o porquê de ser considerada, por crítica e público, uma das maiores. Os fãs que lotaram a entrada do camarim, ao final do show, diriam: Maria Bethânia é a maior cantora do Brasil.
- “A força que nunca seca” (Vanessa da Mata/Chico César)
- “Baioque” (Chico Buarque)
- “Balada do lado sem luz” (Gilberto Gil)
- “Balangandã” (Paulo Dáfilin/Roque Ferreira)
- “Beira mar” (Roberto Mendes/Capinam)
- “Canções e momentos” (Milton Nascimento/Fernando Brant)
- “Cheiro de amor” (Paulo Sérgio Valle/Duda Mendonça/Jota Morais)
- “Demoníaca” (Sueli Costa/Vitor Martins)
- “Diz que fui por aí” (Zé Keti/Hortêncio Rocha)
- “Encouraçado” (Sueli Costa/Tite de Lemos)
- “Eu mais ela” (Chico César)
- “Fé cega, faça amolada” (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos)
- “Gás neon” (Gonzaguinha)
- “Genipapo absoluto” (Caetano Veloso)
- “Gota de sangue” (Angela Ro Ro)
- “Kirimurê” (Jorge Vercilo/Jota Velloso)
- “Mares de Espanha” (Angela Ro Ro)
- “Mar e lua” (Chico Buarque)
- “Ofá” (Roberto Mendes/Jota Velloso)
- “O lado quente do ser” (Marina Lima/Antonio Cicero)
- “Olha” (Roberto Carlos/Erasmo Carlos)
- “Palavras de Rita” (Roberto de Carvalho/Rita Lee)
- “Podres poderes” (Caetano Veloso)
- “Ponto de Iemanjá” (Gamo da Paz/Yomar Asogbá)
- “Rainha do mar” (Pedro Amorim/Paulo César Amorim)
- “Resposta” (Maysa)
- “Rosa dos ventos” (Chico Buarque)
- “Samba do grande amor” (Chico Buarque)
- “Se não te vejo” (Pedro Abrunhosa)
- “Sete mil vezes” (Caetano Veloso)
- “Sete trovas” (Consuelo de Paula/Etel Frota/Rubens Nogueira)
- “Sussuarana” (Heckel Tavares/Luiz Peixoto)
- “Taturano” (Caetano Veloso/Chico de Assis)
- “Tocando em frente” (Almir Sater/Renato Teixeira)
- “Vera cruz” (Xande de Pilares/Paulo César Feital)