Em “Quando chega o outono”, que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (27), um prato feito com cogumelos venenosos serve de gatilho para um drama familiar envolvendo culpa, solidão, segredos inconfessos e envelhecimento. O incidente recriado pela ficção é inspirado numa antiga lembrança de infância do diretor François Ozon, 57 anos, um jantar oferecido por uma de suas tias mais velhas, que preparou os pratos usando cogumelos frescos — alguns venenosos — que ela colhera numa floresta próxima.

— Alguns de nós foram parar no hospital por causa daquela comida. Todos chegamos a pensar, na época, que minha tia talvez tivesse tentado nos matar, porque ela mesma não havia tocado nos cogumelos — contou o premiado cineasta francês, conhecido por filmes como “8 mulheres” (2002), durante o Festival de San Sebastián, onde seu novo longa ganhou os prêmios de roteiro e ator coadjuvante (Pierre Lottin). — Desde criança eu amava essa hipótese, e o diretor na minha cabeça ficava dizendo que, talvez, a cada vez que uma pessoa cozinha cogumelos esteja, inconscientemente, tentando matar alguém.

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O episódio de consequências quase fatais é finalmente aproveitado na história envolvendo Michelle (Hélène Vincent), septuagenária aposentada que vive numa vila rural da região da Borgonha. Ela e Marie-Claude (Josiane Balasko), sua melhor amiga e vizinha, passam os dias cuidando de suas hortas, frequentando a igreja, colhendo cogumelos pelas matas e discutindo problemas de família. Marie-Claude conta os dias para a libertação de seu filho, Vincent (Lottin), preso por um crime nunca muito claro. Michelle aguarda ansiosamente a chegada de Lucas (Garlan Erlos), o filho de Valérie (Ludivine Sagnier), sua única filha, que mora em Paris, para as férias de verão.

O diretor François Ozon — Foto: Divulgação

Lucas é a luz dos olhos de Michelle, e a única ligação concreta que lhe resta com Valérie, que nunca perdoou a mãe por seu passado profissional “comprometedor” — e nunca explicitado. É palpável a excitação da idosa, que areja a casa e prepara grande quantidade de comida fresca para receber a filha e o neto. As coisas desandam quando a sempre estressada Valérie acusa a mãe de envenená-la com cogumelos selvagens e, em reação, volta para a capital com o filho. A partir daí os caminhos de Michelle, Valérie, Marie-Claude e Vincent acabam convergindo, numa narrativa que combina paisagens rurais outonais, humor, mistério e um tantinho de fantasia.

— Pensei em “Quando chega o outono” como uma reação ao meu filme anterior “O crime é meu” (2023), que era uma comédia adaptada de uma peça, com muitas cenas feitas em estúdio e, portanto, muito teatral — explicou Ozon, cuja filmografia evita repetir gêneros e fórmulas. — Havia o desejo de voltar à natureza, a locações simples, a vontade de filmar no campo. Escolhi a Borgonha porque é um lugar que amo, onde passei muitas férias e alguns feriados quando criança, e é uma região que não aparece muito em filmes franceses. E é onde se pode colher cogumelos frescos (risos).

A trama trabalha com os diferentes sentimentos despertados pelos esforços de Michelle para resolver as animosidades com a filha, proteger aqueles que lhe são queridos e construir um ambiente tranquilo para os anos de vida que lhe restam. A atividade profissional exercida no passado, que lhe deu condições para garantir um futuro confortável para ela e a filha, nunca é posta em julgamento, mas está na origem da mágoa de Valérie, e se interpõe entre a idosa e a convivência com seu neto. Todos reagem à crise de forma ambígua — inclusive o garoto.

— Essa é a ambiguidade da vida, sabe? Especialmente dentro das famílias, porque há muitos segredos fora do quadro, coisas que não dizemos. A gente vive com alguém todos os dias, mas não compartilha coisas importantes com frequência, porque achamos que não precisamos explicar — acredita Ozon. — A vida também é construída em cima de coisas que não dizemos, de omissões. É uma maneira de sobreviver, porque a verdade, às vezes, é por demais cruel. É o que Michelle diz para Marie-Claude, quando fala sobre culpa de mãe: “Nós demos o nosso melhor”.

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A conflituosa relação entre mãe e filha é compensada pelo forte vínculo entre Michelle e Lucas:

— Não estamos acostumados a ver em filmes a dinâmica entre avós e netos. Em geral, quando um filme explora isso, é meio clichê, doce demais, é sempre a avó simpática demonstrando amor pelas crianças. Aqui abordamos a realidade de muitas famílias, a de que, às vezes, é preciso pular uma geração para se sentir em paz com suas escolhas pessoais — apontou Ozon. — Queria brincar com essa dinâmica, dessa relação de avó com neto como uma espécie de renascimento pessoal, uma forma de encontrar motivos para continuar vivendo. Especialmente quando uma mãe sente que falhou de algum jeito com a própria filha. O neto é uma espécie de segunda chance.

As veteranas Hélène Vincent (81 anos) e Josiane Balasko (74 anos) parecem se divertir em papéis que raramente são oferecidos hoje em dia a atrizes de “uma certa idade”.

— Escolhi as atrizes certas para fazer este filme. Hélène e Josiane têm formação teatral, trabalhamos juntos em “Graças a Deus” (2016), elas confiam em mim. E foram as primeiras pessoas em que pensei quando resolvi fazer um filme protagonizado por mulheres mais velhas, que são quase invisíveis no cinema — argumentou o diretor. — O fato é que gosto de ver pessoas envelhecendo na tela, as rugas, o rosto de sua idade real. Acho importante politicamente mostrar isso em filmes. E por isso busquei as atrizes que assumissem a sua idade, não querem se esconder atrás de plásticas, ou são obcecadas por juventude.

A atriz francesa Ludivine Sagnier — Foto: Divulgação
A atriz francesa Ludivine Sagnier — Foto: Divulgação

A escalação para os outros dois personagens-chave da trama não são propriamente óbvios. Pierre Lottin é mais conhecido na França por seus papéis em comédias como “Les tuche”, mas consegue dar conta do arco dramático de seu personagem, cujas atividades permanecem o tempo inteiro nas sombras. E há Ludivine Sagnier, que retorna ao universo de Ozon duas décadas depois de “Swimming pool — à beira da piscina”. No filme de 2003 ela era uma jovem beldade de 24 anos que arrastava a personagem de Charlotte Rampling para um jogo psicossexual. Agora ela interpreta uma mulher madura às voltas com o divórcio e a instabilidade financeira.

— Foi uma experiência ótima voltar a trabalhar com Ludivine. É sempre emocionante filmar alguém em diferentes períodos de sua vida. Há 20 anos eu a deixei atravessar uma piscina, vestindo um biquini minúsculo, e atormentar a vida de Charlotte. Ela ainda era meio uma “bimbo” (jovem atraente e ingênua), hoje ela é uma mulher de verdade, tem filhos, está mais madura, fazendo uma personagem completamente diferente. Ludivine é outra mulher.

‘Gosto de ver pessoas envelhecendo na tela’