Sorte ou revés fazem parte da vida. Ainda mais da de quem brincou — ou ainda brinca — de Banco Imobiliário. A versão original americana, conhecida como Monopoly, completa 90 anos em 2025 não só como o jogo de tabuleiro mais popular do mundo (estima-se mais de 270 milhões de unidades vendidas) como também um dos que mais se reinventa. Do tradicional dinheirinho de papel para acertar o aluguel de casas e hotéis à máquina de cartão de mentira para comprar créditos de carbono, a brincadeira se adaptou às facilidades de pagamento do mundo moderno.
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Saiu da mesa e migrou para o celular: o Monopoly Go foi o segundo jogo grátis mais baixado da Apple Store americana em 2024. Diante disso, a indústria do audiovisual também quer tentar uma carta de sorte. Segundo o site Deadline, nas últimas semanas, plataformas de streaming e canais de TV nos Estados Unidos têm travado uma disputa ferrenha para ver quem leva os direitos de um reality show inspirado na brincadeira. No cinema, a atriz Margot Robbie e sua produtora, Luckychap, saíram na frente. Depois de transformarem a boneca Barbie num blockbuster com US$ 1,4 bilhão de receita, agora adaptam o jogo para uma comédia.
—Essa popularidade duradoura vem da capacidade de o brinquedo refletir as lutas e as ambições dentro das economias capitalistas — explicou Lisa Hackett, da Universidade de New England, na Austrália, em entrevista ao GLOBO. —As desigualdades do sistema aparecem nas regras: concentração de riqueza, vantagens do acaso e inevitabilidade de levar outros à falência. Jogadores que conseguem ganhos iniciais tendem a dominar a partida, espelhando as disparidades do mundo real.
Pesquisadora da Pop Culture Research Network, Lisa tem estudos específicos sobre como o brinquedo da marca americana Hasbro “monopolizou a cultura dos jogos”, que ganhou um novo impulso nos anos da pandemia.
—O tabuleiro temático adaptável a diferentes cidades o torna familiar para jogadores do mundo todo. E eficazes estratégias de marketing também sustentaram o apelo — disse a pesquisadora.
No Brasil, os dados do jogo rolam desde 1944, quando a Estrela começou a fabricar o Banco Imobiliário inspirada no Monopoly. Inclusive, ela e a Hasbro travam uma disputa na Justiça, há mais de 15 anos, sobre royalties deste e de outros brinquedos.
Enquanto isso, o tabuleiro expandiu. Hoje, a versão tradicional não se restringe apenas a ruas e bairros do Rio e São Paulo. A ponte do Guaíba, em Porto Alegre, e a Praça Castro Alves, em Salvador, também estão à venda —por 140 mil ou 300 mil “dinheiros”, respectivamente.
O jogo também ganhou uma porção de edições de colecionador. Em 2010, ano do centenário do Corinthians, a Estrela lançou o Banco Imobiliário para boleiros, no qual os passes dos jogadores eram negociados em vez de ruas. Até os fãs de Luan Santana já foram contemplados com um tabuleiro próprio, em 2022, quando os peões coloridos circulavam pela Luan City.
Na Luderia Carioca, empresa de aluguel de jogos, há uma versão tradicional, sempre disputada pelos clientes, que pagam R$ 20 para tê-la em casa por cinco dias. Um dos sócios do negócio, Gilberto Vitor, tem na coleção pessoal uma versão de luxo antiga, que ele não coloca para jogo dos clientes.
— A maioria das pessoas que aluga o Banco quer jogar entre adultos, por uma questão nostálgica — disse Gilberto.
O saudosismo é, sim, um combustível importante no sucesso do jogo. Mas não o único. Na casa do médico Bruno Reis, de 51 anos, o Banco Imobiliário Júnior é sucesso entre os dois filhos, de 9 e 5 anos.
—Eles estão justamente na fase de descoberta do dinheiro, de que as coisas custam alguma coisa — disse Bruno, que tem relembrado sua época de jogador pré-adolescente. — Eu morava em Botafogo e não entendia por que era tão desvalorizado. Pensava: “poxa, meu bairro é tão legal…”. Ali você começa também a entender certas diferenças.
Com isso, o jogo cumpre o papel que o psicanalista Sérgio Prudente, pós-doutor em filosofia pela USP e professor da UFRN, chama de “satisfação pela competição, que divide ganhadores e perdedores”. Ele e Ivan Estevão, também psicanalista e professor da USP, analisaram em seus estudos como Banco Imobiliário funciona como elemento lúdico e político na formação de indivíduos no século XX e XXI.
— O Banco Imobiliário é uma introdução no mundo da competição, em que os excessos e a derrota do outro são as grandes vitórias de nossa época —disse Sérgio. — Mas o jogo em si não é um problema. Ele é uma espécie de efeito do espírito do tempo. Não quer dizer, necessariamente, que quem brinque seja um capitalista selvagem. O Banco Imobiliário é só dedução de uma lógica que se naturalizou.
E se o jogo que valoriza a concentração de renda e a falência do adversário tivesse sido criado, na verdade, como crítica ao capitalismo monopolista do início do século XX? A história do Monopoly tem exatamente essa reviravolta.
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No RG oficial do tabuleiro, o ano de nascimento é 1935 e seu pai é Charles Darrow, engenheiro da Filadélfia que vendeu a ideia para a então gigante de brinquedos Parker Brothers (posteriormente comprada pela Hasbro). Mas, pouco depois, a empresa descobriu que o jogo de Darrow, na verdade, era uma versão do The Landlord’s Game, de 1903. Uma ideia original da ativista de esquerda Elizabeth Magie.
—O jogo de Magie tinha dois conjuntos de regras — explicou Lisa Hackett. — Um focado na monopolização e na derrota dos oponentes, como o atual. O outro promovia o compartilhamento da riqueza.
A ideia da ativista era que, ao experimentar os dois sistemas, as pessoas tivessem um exemplo cristalino de como dividir era melhor do que acumular. “É uma demonstração prática do atual sistema de apropriação de terras com todos os seus resultados e consequências habituais”, escreveu ela numa revista política da época.
Anos depois, Darrow teve acesso ao jogo, mas eliminou as regras de partilha de riqueza. Burilou as regras para ser puramente monopolista e o chamou de… Monopoly.
—A Parker Brothers descobriu a versão de Magie e pagou US$ 500 pelos direitos de sua patente, uma quantia irrisória em comparação às fortunas geradas pelas vendas — diz Lisa.
No The Strong National Museum of Play, museu dedicado à história dos brinquedos, localizado em Rochester, no estado de Nova York, é possível ver o The Landlord’s Game de Magie e versões do Monopoly de Darrow — e também comprar uma versão especial, “Monopoly: Rochester Edition”. Nela, o centro cultural é um dos pontos comercializados pelos jogadores. Pelo site do Google Arts & Culture, é possível fazer visitas virtuais no acervo.
— A transição do Monopoly de uma crítica a um produto comercial dominante é fascinante — disse, ao GLOBO, o curador de jogos de tabuleiro e quebra-cabeças do The Strong, Mirek Stolee. — Mesmo no auge da Grande Depressão, na década de 1930, ele era o mais vendido dos Estados Unidos. Talvez a fantasia de controle que ele oferece seja atraente até mesmo para quem está com dificuldades financeiras.
O médico Bruno Reis levanta esse ponto quando lembra dos perrengues da época em que jogava o Banco Imobiliário no outrora desvalorizado Botafogo.
—Eu era meio duro, sem grana. E aquela vibe do dinheiro, de poder comprar as coisas, gerava sonhos de “um dia vou ter minha casa”. Me levava para este imaginário — diz Bruno.
Aliás, para quem ficou na dúvida sobre o preço atual do bairro de Botafogo: ele foi substituído, na versão atual, pela Ponte Rio-Niterói, avaliada em 150 moedas.