Professora, ativista, membra do Academia Brasileira de Letras, Heloisa Teixeira, que morreu nesta sexta-feira (28), deixou um projeto inédito. Uma das principais estudiosas do feminismo no Brasil, Helô, como era carinhosamente chamada pelos amigos, assina a curadoria do texto de abertura do livro “Mulher viva” , do fotógrafo Gustavo Malheiros.
- Em nome da mãe. ‘Não vou morrer Heloisa Buarque de Hollanda’, diz a professora feminista que abandonou o sobrenome do marido
Com design e co-curadoria de Gringo Cardia, a obra, que será lançada pela Arte Ensaio Editora no dia 26 de abril, no Museu Histórico da Cidade, no Rio, traz entrevistas da jornalista Maria Fortuna com 25 mulheres numa espécie de manifesto contra a violência e o feminicídio. A edição impressa contará com uma tiragem de dois mil exemplares, dos quais metade será doada para o Consórcio Maria da Penha.
Além de pensar o projeto, Helô também concedeu aquela que foi sua última entrevista. Confira abaixo a conversa na íntegra:
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“O melhor de ser mulher hoje no Brasil é a consciência de que vitórias individuais não adiantam senão trouxermos junto o compromisso de arrastar outras mulheres”
Maria: O que é ser mulher hoje?
Heloisa: É viver com sentimento de ameaça e silenciamento porque continuamos sujeitas à desqualificação, à exclusão, às várias formas e nuances da violência, chegando, infelizmente, ao risco de ser mais uma vítima de feminicídio. Por outro lado, é estimulante porque algumas lutas e conquistas nos abriram espaço mercado, no Estado, em vários lugares até hoje interditados para mulheres e estamos fazendo um bom uso destes avanços. Mas o melhor de ser mulher hoje no Brasil é a consciência nascente de que vitórias individuais não adiantam senão trouxermos junto o compromisso de arrastar as outras mulheres. O empoderamento individual, de acento neo liberal, está enfim dando lugar às estratégias de solidariedade e de volta ao sentimento de coletivo, este sim, capaz de mudar nossas histórias e futuros.
Maria: Você é testemunha e agente da transformação do lugar da mulher no mundo. O que destacaria em termos de conquistas femininas e retrocessos da sua juventude para cá?
Heloisa: Esta resposta me traz uma observação triste. Se as demandas feministas hoje são direito à isonomia salarial e ao corpo, ou seja, ao aborto, saúde, segurança diante da ascensão aos vários graus e nuances da violência doméstica e ao feminicídio, podemos conferir como essas demandas continuam as mesmas desde as sufragistas, passando pelo feminismo revolucionário dos anos 1960. Pouco se andou nesse sentido. Mas muito se andou em outras direções. A mulheres conquistaram espaços significativos no mercado, no Estado e mesmo na proposição de novas configurações familiar. Mas o mais importante tem sido essa emergência de uma nova consciência do feminismo, que o empoderamento individual neo liberal impressiona, mas não é suficiente. A consciência de que a solidariedade, o sentido do comum e a estrutura coletiva é que pode alimentar novos futuros, sonhos e projetos para as mulheres.
Maria: Queria te fazer uma provocação e, para isso, preciso fazer uma rápida digressão. Como uma das grandes feministas do país e estudiosas do tema, não acha que o feminismo no Brasil anda um tanto atrasado? Ainda estamos muito mais focadas em reclamar, sempre partindo do pensamento sobre como os homens agem, do que em soluções para transformar o mundo velho. Mulheres pelo mundo parecem mais à frente, no sentido de propor coisas concretas. Não precisamos pensar mais em que mundo nós, mulheres, queremos e quais propostas temos para transformar o que é preciso em vez de ficar apontando o que o homem faz ou deixa de fazer conosco?
Heloisa: Concordo plenamente. Mas abro também o olho para os contextos em que estamos agindo. A chegada da direita radical balançou bastante os caminhos das lutas das mulheres. As novas propostas estão sim sendo feitas, especialmente no espaço livre da web e no Estado onde a maioria de nossas representantes estão mandando brasa. Mas estão conseguindo emplacar suas plataforma? Está ficando difícil, amiga… Nesse quadro Trump/Bolsonaro…
Maria: Ter abandonado o sobrenome do seu marido, pelo qual construiu toda a sua trajetória profissional, foi o maior ato feminista da sua vida? O que te levou a realizar essa mudança? Deu esse passo sem dor ou às custas de algum sofrimento?
Heloisa: Essa troca de sobrenome não foi planejada. Ela veio mansa, se auto sugerindo, rondando na minha cabeça. À medida que prosseguia em minha trajetória feminista, o sobrenome do marido ia ficando mais e mais incômodo. Minha mãe, a quem nunca ouvi direito, começou a se concretizar como imagem forte diante de mim. Descobri minha mãe tardiamente, ouvindo mulheres, mulheres negras, mulheres periféricas que sempre tiram sua força das imagens femininas que as precederam. Foi um aprendizado forte. Quando vi, meu sobrenome era Teixeira, o sobrenome da minha mãe. Bye, bye, marido, bye bye, papai.
Maria: Só teve filhos homens, e agora tem netas mulheres. O que tem aprendido e o que considera fundamental passar para elas?
Heloisa: São tão diferentes meninas e meninos. Essa cultura que nos formatou é de cimento armado. Fui uma mãe ingênua de três filhos homens. Nunca dei uma boneca para nenhum deles, nunca abri espaço para tarefas domésticas. Foram criados para buscar sua liberdade fosse isso o que fosse. Agora me nascem quatro netas. Fiz uma ligação absolutamente visceral com elas. Sou chata de tanto contar coisas, experiências minhas, casos de mulheres fortes como se, sozinha, eu pudesse forjar uma ancestralidade feminina pra elas. É provável que não funcione como penso, mas tentei.
Maria: Que elementos, no sentido de quebra do patriarcado, identifica nos seus netos?
Heloisa: Esse o maior sucesso nosso, mulheres feministas. Não digo que esta geração dos meus netos homens não tenha ainda traços do patriarcalismo. Mas já são de outra cepa. Vejo o tratamento com as meninas bem mais respeitoso, vejo conversas sem aquele exibicionismo machista, vejo um novo cuidado com o próprio corpo, vejo um afeto sem medo de se expressar. Será que estou vendo certo? Ou isso é puro desejo?
Maria: Como se sente no cotidiano nesses novos tempos em que temos maios visibilidade de denúncias atuais de assédio, abuso, etc?
Heloisa: Me vejo meio tonta. No meu tempo um assédio (de hoje) era o comprimento (de ontem). Se me chamassem gostosa na rua, eu chegava em casa vitoriosa. Não sabia que poderia ser uma agressão. E por aí vai. Pra mim, só havia duas formas de violência contra a mulher: estupro e feminicídio (palavra que também não existia ainda). Então, esse novo vocabulário é muito novo para mim. Tenho 85 anos…. Estou aprendendo rápido porque a realidade está se mostrando cruel e nomeável. Previno minhas netas para que se defendam. Quanto à mim, continua assustador entender que as relações de gênero possam gerar sua outra face, a da violência, e que essa violência se instala devagar, se valendo de culpas e vulnerabilidades.
Maria: O que pensa sobre os altos números de feminicídio no país? Como acha que pode contribuir para erradicar algo que se tornou praticamente uma epidemia?
Heloisa: Acho que educação sexual e de gênero é um setor fundamental para transformar uma cultura claramente perversa. As escolas deveriam prestar atenção especial na educação sexual de seus alunos, alunas e alunes. Outra coisa são espaços de acolhimento e de formação profissional e empreendedora para mulheres em estado de vulnerabilidade. Outra ainda é a execução da lei com rigor e treinamento de juízes que frequentemente distorcem sua interpretação por misoginia e mesmo falta de cultura pós patriarcal.
Maria: Qual é o Brasil do futuro, se a gente pensar num lugar melhor para se viver como mulher?
Heloisa: Um Brasil onde a cultura machista foi rejeitada por homens livres, independentes, não competitivos, que condenam todo e qualquer tipo de violência como linguagem masculina. Onde os gêneros não precisam se debater entre binarismos. Onde a opção sexual seja uma escolha flexível, em movimentos criativos e individuais. Onde o respeito não seja uma virtude de poucos. Seja o novo normal em que a gente desminta John Lennon quando disse: “O sonho acabou”.
