Um movimento viral surgido na semana passada levou mais de um milhão de novos usuários ao ChatGPT em apenas uma hora. Pessoas comuns, famosos, marcas e instituições públicas e privadas entraram na brincadeira, que consiste em transformar imagens em reproduções feitas no inconfundível traço do Studio Ghibli. Não precisa ter talento de artista. Basta digitar os comandos desejados que o sistema de inteligência artificial produz a imagem em segundos. O novo gerador de imagens lançado pela OpenAI, empresa responsável pelo ChatGPT, é capaz de imitar diferentes estilos. Mas o que está fazendo mais sucesso (pelo menos por enquanto) são os que remetem ao famoso estúdio de animação japonês, responsável por filmes clássicos como “Meu amigo Totoro” e “A viagem de Chihiro”.
- Febre: ChatGPT atrai 1 milhão de usuários em uma hora com imagens no estilo ‘Studio Ghibli
- Mas atenção: informações pessoais de quem usa sua foto para criar imagens no estilo Ghibli podem estar em risco; entenda
Aparentemente inofensiva, a corrente continuou ganhando popularidade nos últimos dias, mas também vem gerando muitas críticas, trazendo à tona debates sobre violações de direitos autorais e outras questões éticas relacionadas à arte gerada por inteligência artificial.
Para aumentar ainda mais a polêmica, voltaram a circular falas de Hayao Miyazaki, o criador do Studio Ghibli, criticando o próprio conceito de inteligência artificial. Em documentário de 2016, o mestre japonês afirmou que “nunca desejaria incorporar essa tecnologia” ao seu trabalho. “Sinto fortemente que isso é um insulto à própria vida”, completou. Também chamou a atenção o fato de entidades como o exército israelense e a Rota de São Paulo terem entrado na corrente, sendo que o trabalho de Miyazaki é conhecido por seu teor pacifista e antimilitarista. Afinal, a criação de um artista pode servir de base para reproduções, mesmo sem o seu consentimento?
— O grande problema da popularização de determinadas ferramentas de IA é que elas propagam a ideia de que o desenho, em determinado estilo, é algo gratuito, e que todo mundo pode fazer igual por meio de um computador — diz José Alberto Lovetro, presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil. — Essas tecnologias estão aí, e não vai ser possível contê-las. Então, é a hora de os autores se readaptarem para tomar as rédeas disso.
Como resposta ao movimento viral provocado pelo ChatGPT, artistas criaram suas próprias correntes nas redes para compartilhar orgulhosamente as suas criações (feitas sem intervenção de IA, é claro). Do outro lado do ringue, perfis pró-IA defendiam o que chamam de “democratização da arte”. Agora, afirmam, todo mundo pode ser artista.
Para os criadores, porém, o problema vai além de uma simples concorrência da máquina. Ele traz também implicações para o direito autoral. Ferramentas de IA, vale lembrar, não aprendem a gerar imagens sozinhas. Em seu treinamento, elas são alimentadas por conteúdos criados por seres humanos — e isso inclui, é claro, obras de arte. Se uma máquina é capaz de recriar um desenho no estilo Ghibli, é porque ela “consumiu” milhares de materiais produzidos pelo estúdio.
— As IAs são treinadas com massas gigantescas de dados, embora possam, evidentemente, priorizar um estilo ou gênero — diz Cleomar Rocha, pós-doutor em Poéticas Interdisciplinares (UFRJ) e professor de mídias interativas da Universidade Federal de Goiás. — Sempre penso que a referência a trabalhos artísticos contribui para uma socialização da produção, embora reconheça que a ausência de informação seja prejudicial não só para o artista, mas para a cultura e para a sociedade. Neste sentido, não me parece que tais empresas conspirem somente contra os artistas, ao não reconhecerem o uso de sua produção, mas contra uma cultura e contra a sociedade, ao suprimirem informações valiosas para essa cultura.
Nome por trás de animações de grande sucesso como as franquias “A era do gelo” e “Rio”, o diretor Carlos Saldanha acredita que o fenômeno expõe um problema urgentíssimo no mercado:
— A IA é uma realidade que já chegou e ficará cada vez mais sofisticada. Mas tem que haver algum controle que assegure os direitos autorais de artistas, especialmente quando há essa especificidade com relação a um estilo. Tem que haver um jeito de compensar a utilização de uma propriedade criativa, com uma legislação em âmbito global.
A OpenAI e o Google já afirmaram que, em sua interpretação, a lei de direitos autorais dos EUA permite que empresas de IA treinem seus sistemas em trabalhos protegidos por direitos autorais sem que precisem obter permissão ou compensação. A afirmação foi contestada por um grupo de 400 líderes criativos (cineastas, escritores, compositores etc.), que enviou uma carta à Casa Branca pedindo ao governo Trump que não permita que empresas usem obras autorais para treinar modelos de IA.
No Brasil, o Projeto de Lei n° 2.338, que tramita desde 2023, atende a um pedido dos artistas por mais transparência no uso de suas criações. A lei obrigaria o desenvolvedor a informar o conteúdo que está usando na produção da ferramenta, e também a obter autorização dos titulares de direitos de autor.
— Hoje os artistas não têm visibilidade do que está sendo utilizado pelos desenvolvedores — diz o advogado Antonio Curvello, sócio na área de propriedade intelectual da Daniel Advogados. — A Lei n° 2.338 obriga a dar essa transparência, mapeando as obras de terceiros usadas como base. Se eu pegar várias imagens do Sebastião Salgado e usar como fonte de um novo projeto de geração de conteúdo, terei que remunerar o titular das obras originais.
O direito autoral foi originalmente criado para proteger obras criadas por humanos, mas essa lógica se complica em um cenário em que artistas e inteligência artificial trabalham lado a lado. Quem usa IA para criar pode reivindicar direitos sobre o que produz? Se levarmos em consideração as recentes respostas das autoridades americanas sobre o assunto, a resposta é: não, mas depende.
Nos últimos meses, os tribunais dos EUA tiveram que lidar com novas implicações de direitos autorais da indústria de IA. Artistas vêm apelando para a Justiça após ver o Escritório de Direitos Autorais dos EUA recusarem garantia legal de obras geradas por máquinas. O caso mais recente, envolvendo uma obra de arte criada pelo sistema “Dabus”, de Stephen Thaler, promete servir de referência para futuras decisões.
Thaler atribuiu a autoria da obra “Recent entrance to paradise” à máquina desenvolvida por ele. Diante disso, o Tribunal de Apelações do Distrito de Columbia decidiu que ela não poderia pertencer ao programador. Segundo o juiz, a ausência de autoria humana impossibilita o reconhecimento do direito autoral.
O Tribunal de Apelações reconheceu que obras criadas com o auxílio de IA podem ser protegidas, desde que haja uma participação humana substancial. No entanto, ressaltou que ainda não há um critério legal claro sobre o grau de envolvimento humano necessário para que uma obra gerada por IA possa ser registrada. É justamente nessa zona cinzenta e subjetiva da participação que reside toda a controvérsia.
Para Antonio Curvello, sócio na área de propriedade intelectual da Daniel Advogados, a legislação brasileira deve seguir o caminho dos EUA. Segundo ele, o artista que reivindica a propriedade intelectual tem a obrigação de comprovar a sua interferência na obra.
— Ele precisará mostrar ao juiz, passo a passo, como ele influenciou a produção daquela obra, como organizou, selecionou e editou os conteúdos — explica.
Artista visual que utiliza IA em suas mais recentes obras, Giselle Beiguelman não acredita em autoria “compartilhada” entre humanos e máquinas, mas sim “distribuída”.
— Atribuir autoria ao sistema de IA seria o mesmo que imaginar o Duchamp pagando royalties para o fabricante do banquinho e da bicicleta, e o Andy Warhol para a fábrica de sopa Campbell — ironiza ela. — Não diria que é uma criação 100% humana. Tampouco é 100% maquínica.
Cleomar Rocha lembra que as imagens técnicas provocaram discussões acaloradas em vários momentos históricos.
— Debates sobre autoria acompanharam tais embates quase sempre — diz. — Superamos todos, identificando o gênio humano como autor, em detrimento das máquinas que geram imagens e textos. Não me parece que será diferente desta vez. As IAs serão utilizadas para a geração de imagens, que agora são tecnológicas, e os autores permanecerão sendo os humanos que lidam com tais dispositivos, cumprindo a milenar missão de converter o ordinário em extraordinário, como pressupõe a poética.