A imposição de tarifas de importação pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em uma escala inédita em quase um século, vai além de um aviso aos parceiros comerciais do país.
Caso mantidos, os impostos sobre importações também lançarão um projeto econômico de nostalgia desafiadora: uma tentativa de recuperar o lugar da América como potência industrial dominante.
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Durante a era de ouro da manufatura americana no pós-guerra, que durou até os anos 1970, quase 20 milhões de pessoas viviam da indústria. Os Estados Unidos eram líderes na produção de veículos, aeronaves e aço, e a indústria representava mais de um quarto do emprego total.
No fim do ano passado, após uma reorganização profunda da economia global, o setor empregava cerca de 8% da força de trabalho do país.
Hoje, os Estados Unidos são um país mais rico do que nunca. Mas a economia é, e parece ser, muito diferente — dominada por empregos nos serviços, dos mais bem remunerados aos de baixa renda. Centros industriais no interior dos EUA muitas vezes definharam, deixando muitos redutos da base de apoio de Trump à margem da economia.
Políticas industriais protecionistas, com diferentes métodos e enfoques, vêm crescendo há uma década — desde que Trump iniciou sua primeira campanha presidencial, em 2015, passando pela presidência de Joe Biden e agora com Trump novamente na Casa Branca.
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Mas o anúncio do presidente, feito na quarta-feira em uma cerimônia no Jardim das Rosas coberto de bandeiras, representou uma mudança sísmica na política econômica dos EUA — a rejeição mais completa ao livre-comércio global adotado de forma bipartidária desde os anos 1980.
— Com a ação de hoje, vamos finalmente poder fazer a América grande novamente — maior do que nunca — disse Trump. — Empregos e fábricas voltarão com força ao nosso país.
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‘Superpotência’ industrial? Economistas duvidam
Um post no blog da Casa Branca no mês passado declarou que o presidente está posicionando os EUA como uma “Superpotência Global na Indústria”, e atribuiu ao governo o mérito por uma série de anúncios recentes de investimentos no país, por empresas como Nvidia (líder global em chips avançados) e grandes montadoras.
Ainda assim, muitos economistas e líderes empresariais permanecem profundamente céticos em relação à campanha tarifária e à sua capacidade de reverter décadas de declínio no emprego industrial — uma queda causada por fatores globais diversos e de difícil solução doméstica numa era em que fábricas são dominadas por robôs.
Embora haja discordância generalizada quanto à solução proposta por Trump, poucos especialistas questionam seu diagnóstico — ecoado por uma nova geração de conservadores, incluindo o vice-presidente JD Vance — de que a desindustrialização causou uma dor ignorada por muito tempo.
Um estudo publicado este ano pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts detalha o impacto do aumento das importações chinesas no início do século. Conclui que, embora algumas regiões do coração industrial dos EUA tenham se recuperado parcialmente após o chamado “choque da China”, os trabalhadores afetados diretamente não conseguiram se reerguer da mesma forma.
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Desde o final dos anos 1970, uma combinação poderosa de fatores levou à transferência de empregos industriais para o exterior. À medida que multinacionais americanas amadureciam, seus executivos e acionistas perceberam que podiam aumentar a produção com salários mais baixos fora do país — gerando lucros maiores e preços mais baixos para consumidores americanos.
Políticos estaduais e federais, desgastados por confrontos com sindicatos numa era de inflação alta, frequentemente apoiaram essa adaptação ao mercado global.
Ao longo do tempo, o alto valor do dólar tornou os produtos dos exportadores americanos mais caros. E os déficits comerciais — em que os EUA compram mais do exterior do que vendem — também são reflexo da riqueza nacional.
‘Repetimos os mesmos ciclos’
Mas a história econômica do século XXI nos EUA também foi moldada pela busca deliberada de acordos comerciais mais livres, com o objetivo de baixar preços, mesmo cientes de que isso colocaria empregos industriais em risco.
— O curioso sobre finanças e economia é que não avançamos ou aprendemos muito com o tempo; apenas repetimos os mesmos ciclos de maneiras diferentes — diz Brent Donnelly, presidente da Spectra Markets, empresa de pesquisa de mercado.
— Vilanizamos o mercantilismo e idolatramos o livre-comércio, mas somos forçados a repensar essas “religiões” quando a desigualdade de renda destrói a coesão social e décadas de cortes tarifários não reciprocados criam um campo de jogo desigual.
Biden tentou outra fórmula
A Casa Branca de Biden tentou enfrentar esses dilemas com uma abordagem baseada em incentivos: promoveu o fortalecimento de sindicatos, especialmente na indústria, apoiando grupos como o United Auto Workers em setores tradicionais e subsidiando setores emergentes, como energia limpa, com exigências de fabricação nacional.
Essa abordagem — que deve continuar parcialmente por meio dos investimentos e subsídios aprovados no início dos anos 2020 — foi interrompida em novembro. Agora, a política industrial de Trump, baseada no “porrete” das tarifas de importação, está em ação.
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O esforço não apenas para preservar, mas expandir os empregos industriais, ajudou a campanha tarifária de Trump a conquistar apoio entre nomes da esquerda sindicalista, como Shawn Fain, presidente do UAW.
Abby Samp, analista global da Oxford Economics, afirmou que “embora as tarifas provavelmente transfiram parte da produção automotiva para fábricas já existentes nos EUA, também aumentarão os custos para os fabricantes e as famílias americanas”.
Alguns analistas, no entanto, são enfáticos em apontar os riscos envolvidos. A atual ofensiva tarifária é “um tiro no próprio pé”, segundo Omair Sharif, fundador da Inflation Insights, que monitora variações de preços em diferentes setores.
As projeções de recessão aumentaram. E mais de 40% das importações dos EUA são insumos para a produção nacional — ou seja, tarifas mais altas podem afetar os próprios fabricantes americanos.
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Brad Setser, pesquisador do Conselho de Relações Exteriores e ex-funcionário do Departamento do Tesouro e da Representação Comercial dos EUA no governo Biden, defende uma abordagem mais “moderada” para ações comerciais.
Ele apoiou tarifas de 100% sobre veículos elétricos chineses baratos, temendo que empresas como a BYD — maior fabricante mundial de VEs — dominassem o mercado americano e provocassem outro “choque da China”, com perda massiva de empregos nos EUA.
Mas Setser acredita que tarifas devem ser usadas como ferramenta defensiva e pontual, não como solução para a perda crônica de empregos.
— Na maioria dos casos, o resultado final das tarifas não é resolver o déficit comercial, é apenas comercializar menos: importar menos e exportar menos. O déficit total geralmente não muda.
Trump não reduziu déficit comercial no 1º mandato
Apesar de alguns ganhos tácitos nas guerras comerciais da primeira gestão Trump, o déficit comercial dos EUA — a diferença entre importações e exportações de bens — estava tão grande quanto antes quando ele deixou o cargo, e só cresceu desde então. O crescimento dos empregos na indústria também estagnou desde 2019, mesmo com os incentivos do governo Biden.
Isso ocorre em parte porque, apesar do boom na construção de fábricas, a indústria moderna simplesmente não precisa de tantos trabalhadores como no passado.
‘Não é completamente insano’
Refletindo sobre a nova rodada tarifária de Trump, Arthur Wheaton, diretor de Estudos Laborais na Universidade Cornell, disse:
— Não é completamente insano, mas é extremamente disruptivo.
Wheaton diz que não se opõe ao uso pontual de tarifas, mas critica a abordagem do atual governo Trump às negociações comerciais — que muda dia após dia e, no caso do Canadá, veio com ameaças à soberania nacional caso as exigências dos EUA não fossem atendidas.
A abordagem de Trump para o conflito, segundo ele, “é tão fora da curva que é preciso um binóculo”, e esse tipo de instabilidade é ruim tanto para os negócios quanto para a geração de empregos industriais.
Nick Iacovella, vice-presidente executivo da Coalizão por uma América Próspera — grupo de pesquisa e lobby em defesa da manufatura e agricultura nacionais — apoia uma estratégia robusta de “tarifas recíprocas” e disse que o anúncio da Casa Branca, que muitos achavam ser blefe, foi “muito melhor do que eu esperava”.
Iacovella, ex-assessor do senador Marco Rubio, teme que vozes pró-livre-comércio dentro do Partido Republicano vejam o anúncio como o início de uma “corrida ao fundo do poço”:
— Ou seja, vamos priorizar que outros países reduzam suas barreiras para então reduzirmos as nossas. Isso é apenas livre-comércio com outro nome — disse ele.
A expectativa é que os aliados protecionistas de Trump prevaleçam nos debates internos e que as tarifas mais altas permaneçam em vigor por tempo suficiente para atrair fábricas de volta ao país.
— O governo também poderia investir em política industrial, créditos tributários para produção nacional — disse ele. — Isso poderia incentivar ainda mais as empresas a expandirem capacidade e investimento nos Estados Unidos.
Mas o que realmente está por vir no caminho tarifário de Trump nos próximos meses permanece, como de costume, imprevisível.