O GLOBO publicou em sua primeira página na última quarta-feira uma fotografia que captura um instante que estava condenado a se perder, como poeira, no vendaval da violência no Brasil. A fotojornalista Márcia Foletto acompanhava uma operação policial na Ladeira dos Tabajaras, Zona Sul do Rio, que mirava suspeitos do assassinato de João Pedro Marquini, policial civil casado com a juíza Tula Mello. A ação fora conduzida pela Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais (Core) e pela Delegacia de Homicídios da Capital (DHC). Na foto, vemos policiais trajando uniformes camuflados e fortemente armados. Eles carregam o corpo de um suspeito abatido, que seguia num macabro saco plástico.
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Diferentemente de todas as outras formas artísticas, a fotografia tem um poder perturbador. Sua matéria-prima é o tempo, e sua realização mais sublime é exatamente macular esse tempo em sua natureza íntima, a passagem, o fluir. O que vemos numa fotografia é o instante cindido do fluxo irrefreável e feroz do tempo, é a interrupção daquilo que torna o Universo possível, o movimento. A imagem fotográfica está no cruzamento do passado (os eventos ausentes que levaram a esse episódio), presente (único, irrepetível) e futuro (inescrutável, inatingível).
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Outra característica da fotografia como forma artística é que suas realizações mais perfeitas esteticamente nascem para não parecer arte, tamanha sua força e assombro humanos.
Na fotografia de Márcia Foletto há um detalhe que é muito mais que um detalhe: no centro da imagem, um pouco à direita, uma mulher coloca sua mão esquerda sobre o rosto de uma criança, cobrindo seus olhos. A menina veste uniforme escolar e, hoje sabemos, volta da escola com sua irmã mais velha. Ambas estão entre a coluna de policiais e um muro indiferente. A mulher que protege a alma da criança também é uma criança que ainda não alcançou seus 15 anos. Uma bandeira do Brasil tremula no alto do canto direito.
A fotografia me lembra um quadro de Goya, “Três de maio de 1808 em Madri”: ao lado de um pelotão de fuzilamento, um homem cobre o rosto. Um gesto ineficaz diante do horror. Não interrompe a crueldade, não salvará nem mesmo ele do furor das armas; é apenas a expressão da incredulidade diante do mais comum e recorrente ato humano, a violência. O feito não se desfaz, o perdido não se acha, o mal não é afugentado só porque não o vemos.
Mas, diferentemente do quadro cuidadosamente imaginado, realizado com a apurada técnica de Goya, sua paleta de cores, esboços, retoques, Márcia Foletto trabalha com a massa bruta e descontrolada de um mundo em agitação frenética, a correria, o frenesi, o pavor que movimentava as pessoas por becos estreitos. Nada estava sob o controle de sua vontade; então Márcia fatia o enlouquecido caos que devasta tudo, e não apenas as vidas dos que tombam. Devasta tudo mesmo, ela fatia esse caos e, no meio da calamidade que devora as almas, captura um gesto — uma menina de olhos vendados — que torna toda aquela cena absurda.
Susan Sontag escreveu que a fotografia “é o inventário da mortalidade”. Com um clique, o instante imediatamente anterior à dispersão e ao desaparecimento é capturado, e nós ficamos atados àquela despedida. Uma fotografia é a testemunha da “dissolução implacável do tempo” e nos deixa imaginando o que virá depois da imagem esculpida na lente da máquina — permanecemos em suspensão.
Do que a mão protege os olhos da criança? Os olhos estão vendados não apenas para que a criança não veja mais um corpo sem vida desfilando na vizinhança. Mas, muito além disso, é um gesto para que a menina veja o tamanho da escuridão em que nos metemos, a indecência da cadeia de eventos que nos trouxeram à Ladeira dos Tabajaras, que trouxeram a menina e cada um de nós. Vendam-se os olhos para que nós enxerguemos melhor. Isso é inaceitável, não deve pertencer ao nosso mundo. Lilia Schwarcz escreveu que não podemos naturalizar aquela cena. Com o gesto, milagrosamente, ainda que apenas numa fração de segundo, o futuro prometido pela imagem congelada se transforma em algo diferente.
*Waldomiro J. Silva Filho, professor titular de filosofia da Universidade Federal da Bahia, é pesquisador do CNPq e autor, entre outros, de “Procurando razões”, “A calamidade”, “Os dias” e “Epistemology of Conversation”

