Para o Ministério Público Federal (MPF), não pode ser classificado como plano de saúde o serviço com cobertura exclusiva de exames e consultas que a Agência Nacional de Saúde (ANS) propôs que seja testado em um ambiente regulatório experimental, o chamado sandbox. Na avaliação do procurador Hilton Melo, coordenador da Comissão de Saúde da Câmara do Consumidor e da Ordem Econômica (3CCR), uma segmentação nesse sentido está completamente fora do que o brasileiro médio entende como plano de saúde e também do que determina a lei que rege o setor. Ele lembra que o Superior Tribunal de Justiça ( STJ) entendeu que a agência deveria regular o mercado de cartões de descontos em saúde e clínicas populares, o que foi usado como justificativa no lançamento do sandbox para tratar do chamado plano simplificado pela ANS. No entanto, ressalta Melo, a proposta colocada em consulta pela agência reguladora não atende a essa determinação da Corte e nem apresenta a análise criteriosa e aprofundada de riscos necessária para o caso de uma mudança na segmentação dos planos de saúde, o que implicaria, diz, numa alteração legal. Nesta quinta-feira, o MPF enviou uma nota técnica à presidência da ANS apontando falhas na proposta.
– No meu entendimento, um serviço com apenas exames e consultas não é um plano de saúde, nem pelo que diz a lei, nem pelo entendimento de um brasileiro médio sobre esse produto. A nossa orientação é pelo refazimento de toda a proposta. Nem é possível fazer uma discussão sem um Relatório de Análise de Impacto Regulatório. Além disso, é preciso sentar à mesa com os ministérios da Saúde, da Fazenda, o Consu. Afinal, um serviço de consultas e exames pode reduzir a primeira fila do SUS até o especialista, mas pode ter um impacto nas demais filas de serviços de média e alta complexidade. É preciso também entender qual será o impacto para o Orçamento da União, já que estamos falando em serviços que têm um custo mais elevado do que a atenção primária – ressalta o procurador.
Por se tratar de um “laboratório”, Melo diz ainda que falta ao projeto regulatório salvaguardas que permitam a interrupção do experimento caso ele tenha um efeito diferente do que é esperado. Uma das preocupações levantadas pelo promotor é a possibilidade de downgrade dos usuários atuais de planos de saúde de cobertura ampla.
– É preciso criar uma blindagem que proteja os 52 milhões de usuários atuais da saúde suplementar e também aos dez milhões potenciais clientes desse novo serviço, caso a gente entenda que o efeito provocado pelo projeto não é o esperado. É preciso ter como ejetar esse experimento do mercado. O fato é que, como está apresentada apresentada, a proposta não oferece as análises e nem as garantias necessárias para ser colocada em prática.
Melo lembra que tramita em São Paulo uma ação civil pública do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) pedindo a suspensão do sandbox proposto pela ANS, na qual o MPF deverá ser ouvido.
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O procurador diz entender a necessidade de regular esse mercado de saúde suplementar popular, composto pelos cartões de desconto e as clínicas populares, que atendem uma parcela de menor renda da população que não tem acesso aos planos de saúde, mas não se resignam mais a enfrentar as longas filas do SUS. E chama atenção para as recentes declarações do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, de que pretende reduzir a fila de espera para consulta com especialistas usando a saúde privada, ressaltando que caso isso venha a ser feito será preciso uma discussão ampla, que traga transparência de como será implementado.
A professora Lígia Bahia, da UFRJ, destaca que a nota técnica enviada pelo MPF à ANS alerta sobre as fragilidades da proposta apresentada pela ANS que já vinham sendo apontadas pelas entidades de defesa do consumidor.
– A primeira é em relação à fragilidade do conteúdo em si, considerando principalmente a natureza diferenciada de planos e cartões de desconto, bem como possíveis impactos negativos para o SUS, que não foram sequer dimensionados. A segunda refere-se à participação necessária do Ministério da Saúde no delineamento de uma política que diz respeito diretamente a mudanças de fluxos nas demandas que teriam como origem o privado e conformariam um circuito paralelo para o SUS. Trata-se de um documento que joga luzes nas lacunas da proposta de criação de um plano com baixa garantia de cobertura. Nesse sentido, o MPF sugere que a agência constitua um regramento distinto e provisório para tratar dos agentes regulados, dos regimes de oferta e contratação, das coberturas oferecidas, das garantias e capital regulatório, das nomenclaturas a serem utilizadas no mercado e demais componentes dos planos populares, como forma de proteger o consumidor.
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Procurada, em nota, a ANS informa que, até a manhã desta sexta-feira, não havia identificado o recebimento da referida nota técnica do Ministério Público Federal (MPF). A Agência ressalta ainda que segue com as análises das contribuições recebidas pela Consulta Pública 151, encerrada em 4 de abril e na Audiência Pública 52 (25/02/2025) e que todas as questões sobre o tema do sandbox Regulatório serão analisadas juntamente com as demais contribuições. A reguladora afirma que “a tomada de decisão da diretoria colegiada levara em consideração todas as manifestações recebidas” e informa não ter previsão para a divulgação dos resultados das participações sociais.