Tinha decidido passar algumas colunas sem falar de “Vale tudo”, mas a qualidade da trama de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, agora escrita por Manuela Dias, é irresistível. A narrativa não atrai apenas pelos conflitos envolvendo mãe e filha, Raquel (Taís Araújo) e Maria de Fátima (Bella Campos). As figuras masculinas foram construídas com um refinamento impressionante. E Manuela até aqui provou que compreende e respeita essa carpintaria. Está certa ela.
Um dos melhores tipos criados em 1988 é César Ribeiro. O papel coube a Carlos Alberto Ricelli, que formou uma dupla inesquecível com Gloria Pires. Agora, está a cargo de Cauã Reymond, um excelente ator. Quem acompanha o noticiário de TV sabe que os bastidores da novela andam tumultuados. Porém, isso se deve a razões alheias ao que se vê na tela (embora isso não exima ninguém de comportamentos condenáveis em ambientes de trabalho e na vida pessoal). Cauã vem conseguindo imprimir no personagem o traço de cafajestagem que impactou o público da primeira versão. É um dos grandes acertos dessa história.
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César é aquilo que hoje se rotula de um “boy lixo”. Maltrata, manipula, faz ghosting quando lhe convém e se encostou em Maria de Fátima. Cauã transmite tudo isso, mas não se contenta em interpretar um simples vilãozinho. Seu desempenho é cheio de modulações. Semana passada, o ator brilhou numa cena em que não aparecia maltratando uma mosca. Ao contrário, foi maltratado. E estava longe da presença de Maria de Fátima, sua cúmplice habitual de armações.
Aconteceu quando sua casa foi invadida por um detetive contratado por Marco Aurélio (Alexandre Nero). O homem estava atrás de uma mala, que, o espectador sabe (mas os personagens ignoram), contém uma pequena fortuna. César apanhou feio. Apesar das horas gastas na academia de ginástica, ele nem tentou revidar. Repetiu um apelo para o agressor, quase como uma criança acuada: “Não transo violência”. Ao notar que estava machucado, lamentou a possibilidade de ficar com alguma cicatriz “porque a aparência é meu ganha pão”. Foi melancólico, exatamente como queria o texto criado por Gilberto, Aguinaldo e Leonor.
Outro grande personagem masculino é Ivan. Na primeira versão, Antônio Fagundes fez dele uma figura ambígua. Era um herói interessante, ambicioso demais para ser só mocinho. Renato Goés ainda pode chegar lá e alcançar essas nuances, a conferir. E, claro, mais uma vez é uma alegria acompanhar Alexandre Nero, que subiu o tom desde sua primeira cena. Viva ele.
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As novelas realistas fazem um desenho sociológico de uma época. Elas retratam e irradiam comportamentos cotidianos. Seus enredos avançam levados por vilanias ou bondades de personagens que “se parecem com alguém que a gente conhece”. Esse mecanismo produz a identificação e é assim que as tramas caem no gosto popular. Em “Vale tudo”, a maioria delas conserva o frescor. Seria porque certos dramas humanos são atemporais?