Segundo romance da escritora americana Emma Cline, “A convidada”, que acaba de ser lançado no Brasil, se passa durante sete dias de um verão recente na vida de Alex. Uma mulher pobre e nada simples, que, aos 22 anos, sobrevive da ajuda de homens ricos e mais velhos, em uma Nova York partida, sufocada por um crescente apartheid social, ele próprio o outro personagem central da história.
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Definida pela autora na entrevista ao GLOBO por videochamada de sua casa em Los Angeles como uma versão feminina de Tom Ripley, o personagem de Patricia Highsmith, Alex é sim malandrinha, não precisa trabalhar. Mas nem por isso tem um segundo de descanso em uma história que se lê de um fôlego só. “Ela é trapaceira, golpista, e essas palavras parecem resumir o modo americano oficial de se interagir com o mundo hoje”, afirma Cline, se referindo aos leitores sabem bem quem.
Lá se vai uma década desde que Cline, então com 25 anos, assinou contrato milionário, após disputado leilão, para a publicação de “As garotas”. Era seu primeiro livro. Havia publicado contos na New Yorker e na Paris Review, ungida como uma das melhores jovens escritoras pela Granta e terminaria 2015 vendendo quase três milhões de exemplares das edições em inglês da obra inspirada na comunidade alternativa do assassino Charles Manson. Os direitos para o cinema foram comprados pelo produtor de “As horas”, Scott Rudin, e ela foi saudada pela capacidade rara de decifrar, com reflexão psicológica mais apurada que sua idade sugeria, as jovens americanas. Sua protagonista tinha 14 anos.
Em seguida, vieram os contos de “Papai”, também lançados agora no Brasil, e a enxurrada de críticas positivas sobre “A convidada”, que a autora jura jamais ter lido. Pena. Perdeu uma das mais exatas, a de Doug Battersby no Financial Times, em que o acadêmico resume assim o livro: “‘As meninas’ foi, de fato, uma sensação. Pois este é ainda melhor.”
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Comecei a escrever “A convidada” em 2016, logo após terminar “As meninas”. Queria criar uma versão feminina de Tom Ripley, que opera à margem do código moral vigente. Eu morava em Nova York e notei esse grupo de meninas que levava a vida reagindo ao que aparece à sua frente, sem muita elaboração. Abolindo o contexto. Sem tempo para o contexto.
O título já sugere que ela está de passagem…
Sim. Ela não se sente pertencente, mas acredita ter recebido um convite. Ainda que para ficar temporariamente em um ambiente ao mesmo tempo desejável, por seu conforto e privilégio, mas hostil, por sua própria condição.
Alex é nome de meninas e meninos. Mas no português, diferentemente do inglês, “A convidada” já indica o gênero da protagonista. Conforme se avança nas páginas, é tentador fazer um paralelo entre a ficção e as mulheres, tantas vezes tratadas como convidadas em um mundo gerido por homens…
Muitas das situações em que Alex se vê só podem ocorrer, só terão aquele desfecho, só seguem determinado ponto de vista, por se tratar de uma mulher, e, portanto, em algum grau, alguém à margem. Não menos importante é o pouco que se espera dela, o pouco que se permite a ela, o pouco que se compreende dela. Sabia que era um risco, mas a criei propositadamente borrada, como se os leitores a vissem usando óculos com grau errado. Não gosto da ficção que depende do específico. A história se passa nos dias de hoje, mas ainda assim persigo a atemporalidade, inclusive para me deter no imediatismo das reações dela. Evitar revelar seu passado me fez não ter que explicar no detalhe quem ela é.
Alex sofre com um celular que não funciona direito, e é lá que estão suas imagens, curtidas e trocas de mensagens…
Celular é um objeto desagradável, que interrompe, na vida e na arte, o que de fato está acontecendo na vida. Talvez seja tarde demais para se refletir sobre como se interpôs e modificou nossas emoções e aquilo que criamos, mas quis neutralizá-lo. Ou, sem dar muito spoiler, transformá-lo em algo mais útil do que ser apenas um celular.
Você começou a escrever “A convidada” no ano em que Donald Trump se elegeu pela primeira vez. Alex é “trumpiana” ao testar limites, dar de ombros para as regras e ver o outro de forma utilitária?
Ela é um reflexo desse mundo marcado por Trump, mas não foi intencional. Inconscientemente, por osmose, foi impossível não construí-la assim pois temos respirado esse ar por uma década. Não quis fazer um cara a cara com o mundo que me cerca, mas ele sangrou no que escrevi. Alex é uma trapaceira, golpista, e essas palavras parecem resumir o modo americano oficial de interagir com os outros, com o mundo, hoje.
Está escrevendo um novo livro?
Sim, um romance. Gostei da economia de tempo em que a “A convidada” se passa e de poder seguir a mesma personagem do início ao fim. O escopo será similar, mas o universo, o protagonista e a atmosfera são diferentes. Se “A convidada” foi ensolarada e borrada, o novo livro é invernal e frio.
Onde “As garotas”, “Papai” e “A convidada” se encontram?
Os três livros se debruçam sobre o exercício do poder, discutem o real valor que damos hoje à intimidade nos relacionamentos e são experiências femininas contemporâneas.
Não foram poucos os críticos que a compararam a Joan Didion. A autora de “O ano do pensamento mágico” foi uma influência?
Se você aceita os elogios da crítica especializada, precisa ao menos considerar os pontos negativos que veem em suas obras e por isso não leio as resenhas sobre o que escrevo. Sobre Didion, amo-a profundamente. Assim como eu, ela é do norte da Califórnia. Foi a primeira escritora em que pude identificar nos livros locais que sabia exatamente como eram. Em casa, éramos sete irmãos, e talvez por sermos tantos foi mais fácil, desde cedo, termos nossos próprios mundos, não fazíamos tanta falta assim para os adultos. E a Califórnia é um lugar esquisito quando se pensa na presença da natureza em nossas vidas. Imediatamente antes de a gente começar a entrevista, vi um coiote no quintal. Um momento silencioso no meio de uma cidade do tamanho de Los Angeles. Todos os seus sentidos ficam acesos aqui, o tempo todo, e Didion sabia disso.
Como os moradores de Los Angeles têm lidado com a presença visível do aparato policial federal de repressão à imigração indocumentada no Trump 2.0?
Vivemos a terrível realidade de uma cidade, na prática, ocupada. A sensação é terrível, mudou a sensação, o significado de se viver em L.A. Mas também me sinto tola dando minhas impressões a você quando o efeito na minha vida cotidiana é incomparável ao que muitas famílias estão sofrendo aqui, especialmente as de origem latino-americana. Estou lendo um livro sobre o grupo de americanos, não documentados, que imigraram para a Califórnia no século XIX, então parte do México, anteriormente habitada por indígenas. A retórica do governo Trump, tão distante dos valores desta cidade, deste estado, é historicamente enviesada e injusta. Quem é o estrangeiro, afinal?
Autor: Emma Cline. Tradução: Débora Landsberg.
Editora: Intrínseca. Páginas: 267. Preço: R$ 69,90.
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Autor: Emma Cline. Tradução: Marcello Lino.
Editora: Intrínseca. Páginas: 267. Preço: R$ 69,90.