Angela Ro Ro chegou à sala de imprensa da gravadora PolyGram e pediu logo uma cerveja. “Vai ser a única do dia, estou evitando beber porque estou gorda demais, já estou pagando duas entradas no cinema”, disse a cantora de 34 anos, em tom de brincadeira, naquela tarde em abril de 1984, durante entrevista à jornalista Ana Maria Bahiana, na época repórter do Jornal O GLOBO.
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Em seguida, animada, contou histórias sobre seus quatro gatos de estimação. Cavalinho, por exemplo, tinha um jeito de andar “bem machão, tipo surfista aposentado”. Já Maria era dona de um instinto “assassino”, cegou uma ninhada e matou a outra. Tinha ainda a Bolinha e a Petequinha. Todos eles adotados por ela depois de abandonados na porta de sua casa no Recreio dos Bandeirantes, no Rio.
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O papo estava tão solto que Angela quase esqueceu que estava lá para falar do disco novo, “A Vida é mesmo assim”, e das duas semanas de shows no Teatro Ipanema, após anos fora do palco. A artista tentava deixar para trás a fama de agressiva, tempos depois de uma treta com a também cantora Zizi Possi. Ela tiveram uma relação que acabou de forma conturbada, com as duas na delegacia, em 1981.
“Se eu fosse uma bêbada violenta meus gatos já teriam fugido de casa”, disse ela. “Quando estou bêbada, entro em casa querendo cuidar dos furúnculos, fazer carinho. Minha loucura é construtiva. Não podem é querer que eu seja uma mocinha de classe média comportada. Isso eu nunca vou ser”.
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“Dolores Duran tinha culpa de viver paixões violentas?”, continuou ela. “Janis Joplin teve culpa de morrer aos 27 anos? E Noel Rosa de ser boêmio? A luz da criação vem dessas tempestades, e não das vidas caretas”.
No disco de 1984 e também em pessoa, Angela dava a impressão de alguém que tinha alcançado, enfim, e a duras penas, algum tipo de armistício consigo mesma. Ela não prometia o que não podia cumprir — a “vida careta”, a regeneração absoluta que seria uma negação de sua natureza —, mas também sabia por que estradas não passar. Isto ficou claro quando ela disse:
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“Não quero mais esse ranço, esse estigma. É como um prato velho que a gente esquece na geladeira e já não serve pra nada. Assumo todas as loucuras que fiz, mas sei que não mereci ser boicotada e maltratada. A sociedade parece que precisa de alguém pra viver esse papel. E eu, como toda pessoa, tenho um ladinho esquizofrênico. Quando não me dão esse papel eu vou lá e puxo pra mim”.
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O disco refletia essa lucidez. Trouxe suas composições mais bonitas e bem-acabadas em anos, como a bela “Fogueira”, que Maria Bethania tinha gravado no ano anterior, e a faixa-título, “A Vida é Mesmo Assim”, que Antônio Adolfo, amigo, arranjador e parceiro, vestiu com um clima de jazz tradicional.
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O álbum apresentou também uma balada emocionante de Sueli Costa e Tite de Lemos, “Nenhum lugar”, que Angela disse ter gravado “aos prantos, arrasada”, e talvez por isso mesmo a interpretação da cantora tenha ficado à altura da música e da letra.
Havia ainda o lado moleque brincalhão de “Sucesso sexual”, de Leo Jaime e Leandro, proibida de ser executada publicamente pela censura da ditadura militar, que só viria a acabar no ano seguinte.
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O disco termina com a faixa “Hino”, cantada em coro por muitos amigos com uma letra, de Angela, que soa como uma despedida: “Terra, adeus/ Só a Deus eu vou/ Te abraçar no mais alto voo”. Segundo a artista, os versos surgiram como escape. “Chegou um ponto em que eu achei que ia morrer, e isso me deixou tranquila, sabe? Eu ia morrer e pronto, não estava louca, só tinha pressa de acabar o disco”.
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Aquele álbum, ela contou, foi fruto de um período de muita angústia, em que a cantora se sentia fraca e “assustada com tudo, achando que eu não valia a pena”. A desilusão com amigos só piorou o quadro.
“Na hora de usufruir da piscina em casa, acampar no jardim, beber minha bebida, aparece todo mundo. Mas, quando eu me arrastava até o orelhão e ligava pedindo ajuda, todo mundo sumia. Foi aí que eu descobri o outro lado”, desabafou Angela. “Descobri mãe, pai, gente como o Antonio Adolfo e o João Donato, que ia me visitar e me dava força. Com eles e com a ajuda de mim mesma, saí do buraco”.
O disco fora gravada em plena crise, mas, no lançamento, ela estava otimista quanto ao futuro. Só fez um pedido ao público dos seus shows. “Peço um pouquinho de força e condescendência. Todo mundo é esquizofrênico, mas eu tenho umas 16 personalidades morando comigo. Não é fácil, não”.