Na última quarta-feira, o Federal Reserve (Fed, banco central americano) fez seu primeiro corte de juros nos EUA neste ano, reduzindo a taxa de referência em 0,25 ponto percentual, para um intervalo entre 4% e 4,25% ao ano.
Os diretores do Fed votaram em bloco na mesma direção, com uma única dissidência: Stephen Miran, cuja indicação para o cargo pelo presidente Donald Trump fora chancelada pelo Congresso dois dias antes, defendeu um corte maior.
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Em sua sabatina no Senado, Miran já havia citado um suposto “terceiro mandato” para o Fed, ou seja, a ideia de que o BC americano, além de perseguir inflação baixa e geração de emprego robusta (o duplo mandato), deveria buscar também juros baixos a longo prazo.
Miran, que seguirá como chefe do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca, vê juros menores nos EUA como parte de um receituário para reformar a economia mundial.
Em ensaio publicado em novembro de 2024 com o título “A user’s guide to restructuring the global trading system” (“Guia para reestruturar o sistema de comércio global”, em tradução livre), Miran prescreve três frentes a serem adotadas por Trump em seu segundo mandato: subir as tarifas comerciais, forçar uma desvalorização do dólar e reduzir os juros pagos pela dívida pública americana.
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O ensaio foi chamado pelo próprio Miran, “com alguma licença poética”, de potencial “Acordo de Mar-a-Lago”, numa referência ao resort de Trump na Flórida e também a dois outros acordos históricos assinados em hotéis e que remodelaram o comércio global às suas épocas: o Acordo de Plaza, fechado em 1985 em Nova York, e o de Bretton Woods, de 1944, costurado na fase final da Segunda Guerra Mundial numa estação de esqui em New Hampshire e que deu as bases para a criação do FMI e do Banco Mundial.
A grande diferença é que, no caso de Mar-a-Lago, o documento por enquanto é uma grande manifestação de vontade de um único país, os EUA de Trump. O Acordo de Plaza foi feito pelo G5 (EUA, Japão, Alemanha Ocidental, França e Reino Unido) para a desvalorização do dólar e apreciação do marco alemão e do iene japonês, como forma de reduzir o déficit comercial americano.
As consequências para o Japão foram nefastas, com o estouro de uma bolha imobiliária que jogou o país numa estagnação de décadas. Ocorreu após a forte valorização do dólar quando o então presidente do Fed, Paul Volcker, subiu os juros para conter a inflação dos choques do petróleo dos anos 1970.
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Miran quer o dólar desvalorizado para reduzir o déficit comercial. Mas o mundo mudou desde 1985, lembra o ex-diretor de Política Econômica e Dívida do Banco Mundial e professor da Fundação Dom Cabral, Carlos Primo Braga:
— A ideia é que os EUA conseguirão um dólar mais fraco com o Mar-a-Lago, mas combinou com os russos? Quer dizer, combinou com os chineses? Dizer que a China vai aceitar entrar numa negociação para valorizar o yuan em relação ao dólar é só para quem acredita em Papai Noel. Não há acordo de Mar-a- Lago, não tem chance de acontecer.
Miran argumenta que os EUA têm um ônus por emitir a moeda que é reserva de valor e referência mundial, dando “um guarda-chuva de segurança ao sistema financeiro internacional”, e deveria ser pago por isso: “A raiz dos desequilíbrios econômicos reside na persistente supervalorização do dólar. (…) À medida que o PIB global cresce, torna-se cada vez mais oneroso para os EUA financiar o fornecimento de ativos de reserva e o guarda-chuva de defesa”.
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O entendimento de Miran vai de encontro à máxima de Valéry Giscard D’Estaing, ministro das Finanças da França na década de 1960 — e depois presidente —, segundo a qual a condição de ter o dólar como moeda internacional seria um “privilégio exorbitante”, não um ônus a ser arcado pelos americanos. Afinal, o mundo inteiro financia os EUA ao comprar os títulos da dívida do país para ter ativos em dólar.
— Vimos isso no lançamento das tarifas recíprocas, em 2 de abril, quando Trump fez referência ao resto mundo tirando vantagem dos EUA. A visão é que explorar o mercado dos EUA é vantagem para o resto do mundo — diz Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial.
Taxar importações, na visão de Miran, seria a maneira de os EUA repartirem o ônus de ter a moeda internacional de reserva: “As tarifas são, em última análise, financiadas pela nação tarifada, cujo poder de compra real e riqueza diminuem, e que a receita arrecadada melhora a repartição dos encargos pela provisão de ativos de reserva.”
No entanto, o que indicadores recentes dos EUA mostram é que a inflação subiu: quem está pagando as tarifas comerciais são os americanos ao comprar importados. Os EUA têm déficit público crescente e dívida em alta. E aí entra o terceiro ponto principal do Acordo de Mar-a-Lago.
— O resto do mundo deveria aceitar trocar seus títulos por perpétuos de 50, 100 anos, pagando juros mais baixos, uma maneira de reduzir brutalmente o custo da dívida pública dos EUA. Seria um calote em quem detém dívida e não vai querer trocar por títulos mais longos — explica Canuto.
Até para aumentar o saldo comercial, como deseja Trump, há limites. Os EUA perderam espaço na importação global. O país já chegou a responder por 20%, mas hoje representa 12%, lembra a economista Sandra Rios, do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes):
— Com o desarranjo nas estruturas produtivas, os países vão se acomodando e podem redirecionar a produção. Chama atenção o resto do mundo não ter reagido elevando tarifas. Os EUA ficaram isolados.