Em 1901, o encontro com uma dona de casa de 51 anos que apresentava um quadro de esquecimentos e alucinações foi o pontapé para que o alemão Alois Alzheimer descrevesse pela primeira vez a doença que levaria seu nome cinco anos mais tarde. Quase 120 anos depois, o Alzheimer é reconhecido como um diagnóstico neurodegenerativo e progressivo que responde por 60% a 70% dos casos de demência no mundo.
No Brasil, são cerca de 1,2 milhão de pacientes, com 100 mil novos casos a cada ano. Para abordar esse assunto tão importante, O GLOBO traz essa semana o especial Por Dentro da Mente, com cinco reportagens até quinta-feira. No domingo, abordamos os tratamentos novos e em desenvolvimento. Na segunda-feira, trouxemos o depoimento em primeira pessoa de uma paciente e, ontem, mostramos a realidade difícil dos cuidadores no país.
Hoje, entrevistamos a professora de Geriatria e diretora do Banco de Cérebros da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Claudia Suemoto, um dos maiores nomes na pesquisa sobre Alzheimer e demência do Brasil, que responde o que a ciência descobriu ao longo desse século – e o que ainda falta revelar – sobre a doença.
O que nós sabemos hoje sobre as causas do Alzheimer?
Sabemos que existem duas proteínas envolvidas que são a beta-amiloide e a tau. Existem evidências de que primeiro se acumula a beta-amiloide no cérebro, e depois a tau. Trabalhos mostram que esse processo começa de 20 a 30 anos antes dos sintomas, e que está muito relacionado à inflamação cerebral. A grande pergunta hoje é o que desencadeia isso, o que leva a pessoa a acumular essas proteínas. Porque com os novos tratamentos que removem a beta-amiloide vimos que ela volta a se acumular. Entender melhor a doença e descobrir um tratamento mais efetivo é a corrida atual. Tivemos muito progresso nos últimos dez anos, especialmente nos últimos cinco, então estou esperançosa de algo melhor no curto prazo.
Quanto a genética influencia?
Sabemos que existem fatores genéticos, principalmente na doença de início precoce, antes dos 65 anos. Quanto mais cedo, mais genético o Alzheimer é. E quanto mais tarde, mais por influência de fatores ambientais. Existem muitos fatores de risco, como baixa escolaridade, hipertensão, diabetes, dislipidemia [alteração dos níveis de gorduras no sangue], obesidade e inatividade física. Mas do ponto de vista biológico, falta saber o que desencadeia a doença. Será que existe algum processo infeccioso, por exemplo? No ano passado, um trabalho mostrou menos casos entre pessoas que tomaram a vacina contra o herpes-zóster. Há muitas hipóteses, mas por enquanto é muito especulativo. Quem descobrir isso vai trazer a cura para mais perto.
Qual é a orientação em relação aos testes de risco genético?
De um modo geral, não existe indicação para a população fazer esses testes para descobrir o risco. Em casos específicos, como de uma pessoa que é jovem, e cujo pai teve Alzheimer cedo, pode existir uma conversa entre médico, paciente e família. Porque aí é grande a chance de ele ter um desses genes, que pode ter sido passado para os filhos. Mas isso é para programação de vida, como para a pessoa pensar se vai ter filhos ou não. Mas saber que você tem alta probabilidade de ter Alzheimer não vai mudar muito esse risco. O que pode ser feito é o que já deveria ser de qualquer forma, que é boa alimentação, atividade física, cuidar dos outros fatores de risco.
O quanto a forma de se fazer o diagnóstico mudou?
A verdadeira revolução do Alzheimer é em relação ao diagnóstico em vida. Antes essa identificação era apenas em exames neuropatológicos depois da morte. Hoje é possível detectar as duas proteínas com exames de imagem que mostram a deposição no cérebro. Mas eles são caros e feitos em poucos centros do Brasil. Na Europa e nos EUA, foram aprovados testes de sangue que também conseguem fazer isso, ainda indisponíveis aqui. Precisamos falar sobre mais acesso aos exames, validar os testes sanguíneos no país e buscar esse diagnóstico de modo geral. Ainda há muita subnotificação no Brasil, estima-se que 80% dos casos não são confirmados. Muitas pessoas pensam que esquecer é normal do envelhecimento e não procuram ajuda.
Essa confirmação dos casos vem acompanhada de novos tratamentos que atuam de forma inédita na doença. Como vê esses remédios?
As novas medicações foram aprovadas desde 2021, são muito recentes. São anticorpos antiamiloide que removem com bastante eficiência essa proteína do cérebro. Não é para todos, é para quadros iniciais e leves. Os pacientes continuam piorando ao longo do tempo, mas pioram mais lentamente. No congresso da Associação do Alzheimer, no Canadá, foram apresentados dados de acompanhamento por três anos. Parece continuar a haver um benefício clínico, mas que ainda é discreto. O que nos deixa mais preocupados são os efeitos colaterais. As drogas causam um processo inflamatório que leva a um inchaço do cérebro. Em alguns pacientes, também causam pequenas ou grandes hemorragias. Esses efeitos não são incomuns, mas parecem ser, na maior parte das vezes, de curta duração e assintomáticos. Houve, porém, alguns casos graves, inclusive que evoluíram para óbito. Estamos buscando entender o melhor paciente para receber essas drogas.
Para os próximos anos, existe algum tratamento em testes que tenha te chamado a atenção?
No congresso, vimos uma droga em fase inicial que se chama trontinemabe. Ela também é antiamiloide, mas tem uma molécula que faz a entrega do medicamento de forma mais efetiva no cérebro. Parece que promove uma melhor distribuição com menos efeitos colaterais. Ela vai entrar em testes maiores neste ano, e os resultados finais devem aparecer só em 2029. Mas em dezembro agora vão sair os dados do estudo com a semaglutida, do Ozempic. Estou com bastante expectativa para ver esses resultados.
Temos estimativas de aumento de diagnósticos de Alzheimer. Há de fato mais casos ou é apenas o maior acesso a testes?
Esse aumento é inegável e causado principalmente pelo envelhecimento populacional. A idade avançada é o principal fator de risco. A prevalência de demência é por volta de 3% aos 65 anos, e dobra a cada cinco anos. Em pessoas com mais de 90, há trabalhos mostrando uma prevalência de 50%. No Brasil, os casos devem triplicar até 2050. Há também um efeito de fatores de risco. Parte é porque nós estamos mais obesos, mais inativos fisicamente, com mais diabetes, colesterol. Só que, de longe, a principal causa é o envelhecimento.
Quais as mudanças de maior impacto para uma pessoa que está ali nos 50 anos e quer evitar a doença?
A meia-idade é uma janela muito importante para a prevenção de demências. Isso deve ser feito primeiro com o básico, que é atividade física associada a uma dieta saudável, ou seja, rica em vegetais, verduras, frutas, itens integrais, com consumo moderado de proteína, principalmente peixe, evitando ultraprocessados. A dieta e o exercício físico são os pilares para a saúde cerebral e para diminuir outros fatores de risco.
Como é o trabalho no Banco de Cérebros da USP?
O banco existe desde 2004, hoje temos mais de 4,5 mil cérebros coletados. Com isso, temos visto que Alzheimer é a principal causa de demência no Brasil, mas que a segunda causa é demência vascular, que é um tipo totalmente prevenível. E temos mostrado diversos fatores de risco associados à doença. Vimos que mesmo poucos anos de escolaridade, de 1 a 4, já conferem reserva cognitiva e protegem da demência, o que é relevante porque a educação no Brasil é muito baixa. É um trabalho importante porque, como é um banco 100% nacional, falamos de causas e riscos específicos da população brasileira.