Acaba de sair no Brasil o último livro do escritor irlandês Paul Lynch, “A canção do profeta”, um romance distópico sobre a consolidação do totalitarismo na Irlanda, vencedor do Prêmio Booker em 2023.
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Lynch se alinha, portanto, a uma vertente da literatura contemporânea que, levando em consideração as questões da contemporaneidade (especialmente os esforços de destruição do meio ambiente e da democracia ao redor do planeta), constrói narrativas que se passam em futuros possíveis, e bem pouco desejáveis.
O romance de Lynch apresenta o protagonismo de um casal, Eilish e Larry. Ela atende a porta de casa uma noite e encontra membros da polícia secreta, que levam o marido para interrogatório. A partir desse primeiro ato, a trama se desenvolve em direção a um recrudescimento das posições tanto de ataque do governo quanto de resistência de parte da população, até chegar a um cenário de guerra civil.
Esse conflito local, contudo, fica cada vez mais amplo e complexo, articulando oposições políticas, éticas e sociais que repercutem, midiaticamente, por todo o mundo: “No noticiário estrangeiro chamam de insurgência, Molly diz, mas, se você quiser dar à guerra o nome adequado, chame de entretenimento, agora nós somos TV para o resto do mundo”, escreve Lynch.
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O mundo pessoal e cotidiano de Eilish e Larry se desfaz, abruptamente — e, ao redor dessa cena íntima, é todo o contexto de um país que também se desfaz. Trata-se de um permanente arranjo entre aquilo que ocorre na esfera familiar e aquilo que ocorre na esfera política, comunitária, social: a narrativa de Lynch é trabalhada sempre tendo em vista essa articulação peculiar entre o mundo interno dos personagens e o cenário amplo exterior — as manobras políticas, a cobertura dos meios de comunicação, a guerra física dos artefatos e a guerra psicológica das explicações e justificativas.
Os grandes eventos transcorrem do lado de fora, irremediáveis, mas, do lado de dentro, acompanhamos na leitura o desenvolvimento da percepção dos personagens. Eilish, por exemplo, escreve Lynch, “anda pela casa tentando ver o que está à sua frente, o mundo se ramificando numa impossibilidade, a coisa pavorosa visível na luz crescente da janela da cozinha, duas colunas de fumaça preta subindo nos bairros mais ao sul, um helicóptero militar ali perto, ela não consegue calcular a que distância, talvez uns três ou quatro quilômetros dali”.
Boa parte do romance lida com os aspectos domésticos e mundanos da vida de Eilish: manter a geladeira abastecida com leite; levar as crianças para a escola; cuidar das demandas do bebê — em paralelo, o novo regime totalitário impõe toques de recolher à população, bandidos vandalizam as ruas e ataques aéreos atingem o bairro da família.
Eilish desconfia que a polícia se confunde com os bandidos, e vice-versa: “Ela sabe agora que houve outros ataques, que aquilo que aconteceu com a casa dela aconteceu no país todo, o para-brisa dos carros golpeados com canos e tacos, vitrines estilhaçadas e fachadas de casas vandalizadas. Há boatos de que alguns dos homens eram membros das forças de segurança, de que alguns eram da Guarda”.
Com frases sinuosas, cheias de imagens fortes e sem quebras de parágrafo, Lynch lança os leitores em um pesadelo que diz respeito tanto ao futuro quanto ao passado — os jurados do Prêmio Booker elogiaram o romance por ser “implacável”.
O livro de Lynch também carrega um forte componente compulsivo, já que parece ser levado adiante por uma força incontrolável: o estilo do autor tenta dar conta do desenrolar do confronto de Eilish com a queda de seu país em um regime totalitário e uma guerra civil, tudo isso ocorrendo enquanto ela tenta manter sua família unida.
Eilish alterna entre pânico e negação, entre manter a cabeça baixa e se recusar a acatar a lógica do regime, uma ambiguidade profundamente humana e que assegura a força da história de Lynch.
Autor: Paul Lynch. Tradutor: Rogerio W. Galindo. Editora: DBA. Páginas: 304. Preço: R$ 80.
Kelvin Falcão Klein é autor de “O Olho Sebald” e professor de literatura na UNIRIO