Muito, muito tempo antes das selfies, sair bem na foto era um exercício não só de vaidade, mas também de poder — ainda mais no século XIX, quando ter a imagem impressa em papel era uma revolução tecnológica inicialmente acessível a pouca gente. No Brasil, o português Joaquim Insley Pacheco (1830-1912) fez seu nome como um dos grandes retratistas de sua época, a ponto de tornar-se o fotógrafo oficial da Casa Imperial de 1857 até a chegada da República, em 1889. Sua trajetória sui generis mereceu a biografia “O espelho de papel”, que será lançada amanhã, no Rio. Doutor em História pela Universidade Federal da Bahia, o pesquisador e historiador baiano Daniel Rebouças assina o livro, que traz também mais de 400 fotos de Insley que estão sob guarda do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).
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A obra merece atenção por pelo menos dois motivos. O primeiro, mais óbvio, está nas próprias fotos, em que o leitor entra em contato com um segmento privilegiado do Brasil do Segundo Reinado. Rebouças organizou tudo em grupos: monarcas, políticos, artistas e intelectuais, religiosos, figuras da elite, pessoas comuns — ou nem tão comuns assim, porque, cada dúzia de reproduções no formato carte de visite (9,5 x 6cm) custava, calcula Rebouças, o equivalente a algo entre R$ 200 e R$ 600 atuais. Era um “entretenimento” em expansão, mas não para todos.
Nessa viagem no tempo encontramos, além de Dom Pedro II e grande família, eminentes personagens que hoje batizam ruas do Rio, como Machado de Assis, José de Alencar, Carlos Gomes, Visconde de Caravelas, Visconde de Mauá, Marquês da Gávea, Francisco Otaviano, Regente Feijó e Marquês de Sapucaí, entre outros.
As imagens também contam histórias menos visíveis para os leigos de hoje:
— No conjunto, as fotos traduzem o espírito de uma sociedade que está lidando com valores em transição. No início, percebemos os valores escravocratas, senhoriais, aristocráticos, que são entrecortados, ao mesmo tempo, por discursos como o da igualdade, o liberalismo, o médico-científico, todos impactando os valores da família. Na sequência temos o aburguesamento da sociedade, e as roupas vão se tornando menos senhoriais, a casaca perde importância, as referências militares perdem relevância. É o século da modernidade — ensina Rebouças, que também é professor da Universidade Federal da Bahia.
Além das imagens, “O espelho de papel” tem seu mérito também ao contar a própria trajetória de Insley. Nascido numa aldeia próxima a Braga, em Portugal, ele veio para o Brasil aos 13 anos, já órfão de pai e mãe. Viveu e trabalhou no Ceará, no Maranhão e em Pernambuco antes de se estabelecer no Rio de Janeiro, em 1854.
Insley se iniciou no mundo da reprodução das imagens graças a um mágico ilusionista irlandês, Frederick Walter, que vivia em Fortaleza. Ele “trazia consigo um aparelho de daguerreótipo, que usava durante o dia, e um gabinete de mágica, que usava à noite em teatrinhos”, como conta Rebouças.
Outro ponto importantíssimo para a formação de Insley foi uma longa viagem que fez aos Estados Unidos, ainda antes de mudar-se para o Rio. Foi lá que ele aprendeu a unir seu talento artístico de pintor e aquarelista à formação acadêmica nas artes gráficas e à experiência profissional.
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Mais do que um ofício que combina arte e tecnologia como poucas, Insley Pacheco compreendeu como ninguém, em sua época nos EUA, a importância das estratégias de mercado para um segmento tão promissor. Nesse mesmo período, também conheceu o fotógrafo Henry Earl Insley — a quem homenagearia, anos depois, “surrupiando-lhe” o sobrenome. Com isso, diz Rebouças, queria associar a qualidade do seu trabalho à dos profissionais estrangeiros.
Pragmático, o português mergulhou no lado business da força tão logo voltou ao Brasil. Investiu em publicidade na imprensa, valorizou seu tempo de estudos internacionais, enalteceu sua intimidade com as tecnologias mais modernas e “cosmopolitas”, ofereceu produtos inéditos para uma clientela crescente.
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Assim, Insley cuidou do seu “marketing pessoal” muito tempo antes de essa expressão cair na boca dos empreendedores do planeta. No caso, cercou-se de “pessoas da mais alta sociedade” e tratou de aproximar-se da família imperial, até porque Dom Pedro II era entusiasta da incipiente arte-ciência da fotografia e logo apreciou seu estilo. Quando se tornou o retratista da Casa Imperial, Insley também obteve o direito de comercializar imagens da família real. Num país que concedeu mais de mil títulos nobiliárquicos ao longo do século XIX, as fotografias da família real funcionaram gradativamente como um modelo de comportamento para essas novas elites, que foram mudando de endereço ao longo do tempo.
Sorte de Insley, que conquistou cada vez mais clientes interessados em ser retratados pelo preferido do imperador. Era uma espécie de investimento na própria imagem pública.
— O trabalho dele chegou a influenciar também a classe burguesa, que tentava reproduzir como os nobres da família real se apresentavam publicamente — conta Rebouças. — São detalhes que percebemos nas roupas, nas poses, nos adereços.
O lançamento de “O espelho de papel” será nesta quarta-feira (1º), às 15h, no IHGB, na Avenida Augusto Severo 8, na Glória, Zona Sul do Rio. O evento contará com uma conversa aberta entre Daniel Rebouças, Pedro Corrêa do Lago, diretor de Iconografia do IHGB e diretor editorial da Capivara, e Lucia Guimarães, primeira secretária do IHGB e professora titular do departamento de História da Uerj.
‘O espelho de papel’
Autor: Daniel Rebouças. Editora: Capivara. Páginas: 160. Preço: R$ 75.