A maior companhia de energia elétrica da América do Sul se espalha pelo Brasil, com sua rede de transmissão e hidrelétricas capazes de fornecer energia suficiente para 75 milhões de lares, do Cerrado ao litoral. Assim como o país que ajudou a criar, a Eletrobras deveria ser uma potência econômica.
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Em vez disso, é um estudo de caso sobre as dificuldades do processo de privatização de uma estatal. E traz lições para todo o continente, à medida que uma nova onda de líderes de centro-direita pressiona pela venda de empresas estatais.
Desde que o governo abriu mão de sua participação majoritária na Eletrobras em 2022, a empresa tem lutado para achar um caminho. Sua nova administração, formada por veteranos renomados do setor de petróleo a ex-funcionários de bancos, tem se esforçado para otimizar uma organização cujos ativos acumulados ao longo do tempo incluíam um hospital, um cinema, uma igreja e um aeroporto.
Uma burocracia fragmentada, resultado da fusão de várias empresas menores que deram origem à moderna Eletrobras, agravou o desafio. Suas ações sofreram em consequência.
Mas há sinais de que a Eletrobras pode finalmente ter virado a página. Depois que a concessionária reportou forte crescimento de receita em 6 de agosto — e um dividendo respeitável — os investidores impulsionaram as ações da empresa. Elas agora são negociadas regularmente acima do preço de oferta de 2022, de R$ 42, após passar a maior parte dos últimos três anos abaixo desse patamar.
Analistas afirmam que o presidente-executivo, Ivan Monteiro, e sua equipe progrediram na racionalização dos negócios, que se tornaram mais transparentes, previsíveis e atrativos para o mercado.
— Imagine administrar uma empresa como esta logo após a privatização, com pessoas exigindo resultados de curtíssimo prazo — disse Monteiro em entrevista. — O que mais importa é para onde a empresa está indo. Ela está se tornando mais saudável do que era, e nossos acionistas têm uma visão de longo prazo para apoiar a mudança.
A experiência da Eletrobras tem implicações em toda a América Latina, que pode estar à beira de uma nova rodada de privatizações. Na Argentina, o presidente Javier Milei prometeu privatizar estatais em larga escala.
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No Brasil, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas — e possível candidato à presidência em 2026 — já privatizou uma grande empresa estatal de água e esgoto, a Sabesp. O processo pode levar a empresas mais saudáveis no final, mas o sucesso dificilmente é garantido, e os acionistas não devem esperar uma jornada tranquila.
Alexandre Sant’Anna, analista de ações na ARX Capital Management, disse que a Eletrobras continua sendo um projeto em andamento, após a privatização.
— A empresa, na verdade, ficou mais enxuta, reduziu custos e despesas com pessoal e reestruturou sua holding. Claro que há espaço para mais, mas é um começo — disse Sant’Anna.
Fundada em 1962, a Eletrobras foi uma peça-chave no “milagre econômico” brasileiro do fim da década de 1960 e início da década de 1970, quando o país cresceu mais de 10% ao ano com investimentos maciços em infraestrutura. Para construir algumas de suas usinas hidrelétricas nos rios caudalosos do país, a empresa teve que construir cidades inteiras do zero — o que ajuda a explicar seu acervo de ativos incomuns.
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A usina de Furnas, no Rio Grande, por exemplo, ajudou a construir a cidade vizinha de São José da Barra, que hoje tem cerca de 7.800 habitantes. Embora a usina hidrelétrica tenha começado a operar em 1963, a Eletrobras ainda é proprietária do aeroporto da cidade, de dois hotéis e de um cinema.
O aeroporto, destinado a facilitar o acesso dos executivos da empresa ao local, agora é arrendado pela Marinha do Brasil, que também utiliza um dos hotéis.
A Eletrobras está tentando vender o outro hotel, bem como vender ou doar o cinema. O hospital, por sua vez, foi construído durante a obra do enorme Complexo Hidrelétrico Paulo Afonso, na Bahia, iniciadas em 1948. No ano passado, a empresa doou o hospital para uma universidade pública local.
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Os anos de crescimento do país deixaram a Eletrobras com a reputação de ser uma das empresas menos eficientes do Brasil, com uma holding com pouca relevância, participações minoritárias com poucos ganhos e altos custos.
As unidades, que agora trabalham de forma mais uniforme junto à holding, operavam como burocracias desconectadas, de acordo com executivos da empresa. Os balanços das unidades, antes da oferta de 2022, levavam dias de trabalho manual em planilhas para serem concluídos e unificados no resultado da controladora.
A privatização, feita no governo de Jair Bolsonaro, deveria mudar tudo isso. O trabalho começou quando Monteiro assumiu o cargo de CEO em setembro de 2023. Ele cortou os custos operacionais em 18% e reduziu o quadro de funcionários em 17%, de acordo com os relatórios financeiros da empresa.
Ele se desfez de ativos não essenciais, como usinas termelétricas a gás, vendidas para a Ambar Energia. Também renegociou contratos com funcionários, clientes e fornecedores e buscou substituir uma mentalidade burocrática pela disciplina do setor privado. Em dezembro, a empresa mudou-se para uma nova sede no Rio de Janeiro, com espaços de trabalho abertos em vez de grandes escritórios para cada gerente.
— Cultura leva tempo. Vamos avançando, mas leva tempo— afirmou Monteiro.
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Ele e sua equipe têm sólida reputação no meio empresarial brasileiro. Monteiro é ex-CEO da Petrobras e também atuou como diretor financeiro do Banco do Brasil. O diretor financeiro da Eletrobras, Eduardo Haiama, é ex-analista de pesquisa de ações do Banco BTG Pactual e foi diretor de finanças da Equatorial Energia, concorrente da Eletrobras, por 11 anos.
Eles planejam mais desinvestimentos. A empresa fechou este ano um acordo com o governo para liberar a Eletrobras do financiamento da conclusão de um terceiro reator, há muito adiado, na central nuclear de Angra dos Reis, no Sul Fluminense. A agência de classificação de risco Fitch Ratings, citando estimativas do governo, disse que a conclusão do projeto provavelmente custaria R$ 20 bilhões.
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A Eletrobras também busca vender participações minoritárias em ativos avaliados em mais de R$ 30 bilhões, disse Haiama.
“Se dependesse de mim, eu venderia tudo”, disse Haiama, em entrevista. “Mas com juros tão altos, é difícil chegar a um valuation justo.”
A empresa reportou um lucro de R$ 10,4 bilhões no ano fiscal de 2024, acima dos R$ 3,6 bilhões de 2022, ano da privatização. A taxa Selic está hoje em 15%.
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Mas a saída do controle estatal não tem sido fácil, em parte devido à estrutura da empresa. O governo detém 45% da participação por meio de um sistema de ações de dupla classe. Recentemente, a administração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva pressionou com sucesso para aumentar sua influência no conselho da empresa. Analistas dizem que a possibilidade de interferência do governo pesou sobre as ações.
— A Eletrobras ainda não está precificada como uma empresa privatizada — disse Vitor Sousa, analista de pesquisa de ações da Genial Investimentos. — Para que isso aconteça, pode ser necessária uma mudança de governo, as taxas de juros precisam cair e a empresa precisa permanecer comprometida com sua estratégia de recuperação.
Para muitos acionistas, a Eletrobras não é apenas um investimento especulativo. A venda de ações em 2022 permitiu que trabalhadores brasileiros investissem na empresa R$ 6 bilhões de suas economias do FGTS. A oferta atraiu 370 mil investidores individuais. O UBS BB Investment Bank, que antes tinha como meta um valor justo de R$ 70 por ação, agora vê R$ 59 como realista em 12 meses.
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Há também a questão dos dividendos da empresa, que têm oscilado à medida que sua liderança equilibra a satisfação de acionistas ávidos por rendimentos com investimentos em modernizações de ativos que foram adiadas.
Monteiro alertou que os R$ 4 bilhões em dividendos mais recentes não devem ser vistos como o novo normal, por mais que tenham agradado aos investidores.
— Não se pode simplesmente pegar um elemento isolado e dizer: ‘Este é o nível de dividendos’ — disse ele.
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A empresa enfrenta um mercado em rápida transformação. As energias solar e eólica — quase inexistentes no Brasil há uma década — pressionaram para baixo os preços da eletricidade no atacado. Como resultado, a Eletrobras evitou fechar contratos de longo prazo com grandes clientes, na esperança de capitalizar futuros aumentos de preços.
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Os preços da eletricidade voltaram a subir, mas o balanço mais recente da empresa estimou que 32% a 43% da eletricidade disponível em 2027 permanece descontratado.
A Eletrobras está buscando modernizar suas operações internas, à medida que o país que atende se transforma em uma potência econômica. A empresa investiu no aprimoramento de seus modelos de comercialização de energia e lançou recentemente uma plataforma meteorológica interna chamada Atmos para prever melhor a demanda de energia e planejar a manutenção.
Essas plataformas têm se tornado cada vez mais importantes para as concessionárias de energia elétrica em todo o mundo, à medida que se adaptam às flutuações diárias de um clima em mudança.
— Meu trabalho não é apenas modernizar a infraestrutura da empresa —disse o vice-presidente-executivo Juliano Dantas, que liderou a iniciativa Atmos. — É ajudar a criar oportunidades futuras.
Monteiro afirmou que as melhorias da empresa continuam no caminho certo.
— Estamos comprometidos em executar o que foi discutido: uma empresa mais madura, bem posicionada, com os modelos certos, redução de custos — tudo o que nos propusemos a fazer — disse ele.