Um patrimônio milionário deixado por um casal de escaladores de 89 anos, ele um contador polonês e ela uma secretária aposentada da Petrobras, que inclui um apartamento na Avenida Oswaldo Cruz, no Flamengo, na Zona Sul do Rio, com valor aproximado de R$ 2 milhões, é disputado na Justiça por um sobrinho e por duas cuidadoras dos idosos. Em meio a briga pelos bens, há dois testamentos lavrados num mesmo cartório, dois inventários distintos, troca de acusações, e até uma investigação para apurar se houve alguma responsabilidade pelo declínio do estado de saúde da secretária. Ela morreu no dia 20 de maio 2019, no Hospital Copa D’or, em Copacabana, nove meses após o falecimento do marido.
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A herança deixada pelo casal pode ir além do imóvel. No último 17, o juízo da 12ª Vara de Órfãos e Sucessões, onde o caso tramita, deferiu um pedido de buscas por outros ativos financeiros dos idosos. Um deles seria um carro importado, fabricado entre os anos 1996 e 2000, que estaria na garagem do edifício onde eles moravam. Além disso, a investigação judicial também vai verificar se os escaladores tinham dinheiro depositado em contas bancárias ou valores em ações de investimento.
Adepto de escaladas, o polonês Tadeusz Edmund Hollup conheceu a secretária Cionyra Ceres de Araújo Hollup, também praticante da mesma modalidade, num clube de montanhismo, na Zona Norte do Rio. A paixão pelo esporte favoreceu a uma aproximação, que logo se transformou em amor. Em julho de 1952, o namoro resultou num casamento. A união dos escaladores, que não tiveram filhos, durou 66 anos, até que o contador morreu no dia 27 de agosto de 2018, no Hospital Copa D’or. Dois dias antes, ele havia entrado na unidade de saúde após passar mal.
Segundo o atestado de óbito, o falecimento ocorreu por problemas cardíacos, insuficiência renal aguda e sepse (infecção) urinária. Anos antes, no dia 31 de julho de 2007, o casal havia registrado um testamento em um cartório, no Centro do Rio, deixando todos os bens para Vitor Hollup, de 67, professor e sobrinho do polonês e da secretária. Ele, inclusive, já aparece, desde o último dia 17 de setembro de 2025, como inventariante em uma ação de confirmação do documento, referentes a parte deixada pelo tio, ou seja, 50% dos bens do casal.
O processo de inventário ainda não foi concluído por conta de pendências judiciais. Após a morte do contador, em agosto de 2018, Vitor chegou a administrar as despesas da casa dos tios até outubro de 2018, quando a tia escolheu contratou um advogado para ser seu procurador e exercer a função. Vitor alegou ter tentando visitar o apartamento, neste período, mas alegou ter sido surpreendido por uma ordem deixada na portaria proibindo sua entrada. O bilhete tinha a foto do professor para facilitar a sua identificação, e era supostamente assinado por Cionyra.
Uma medida protetiva contra o professor, exigindo que ele mantivesse uma distância mínima da tia, também chegou a ser expedida pela justiça na ocasião. De acordo com o Ministério Público, no entanto, um laudo de um perito grafotécnico comprovou que a assinatura no documento deixado na entrada do edifico onde os idosos moravam não era da aposentada.
No dia 26 de março de 2019, Cionyra passou mal e precisou ser levada para o Copa D’or, onde foi internada. Segundo boletim médico, a paciente era hipertensa, diabética e portadora de insuficiência real crônica e de demência avançada. A secretária morreu cerca de um mês depois, no dia 20 de maio. Segundo o atestado de óbito, a causa do falecimento foi tromboembolismo pulmonar, trombose venosa profunda, febre de origem obscura, queda no número de plaquetas e anemia. Após a morte, o professor descobriu que a idosa tinha feito um novo testamento destinando a parte dela para outras pessoas.
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Lavrado em cartório no dia 5 de dezembro de 2018, cinco meses antes da secretária falecer, o documento dividia a parte da herança da aposentada para as cuidadoras, Maria de Lourdes Barbosa Soares e Gilcilene Souza Martins. A duas trabalharam com os idosos por um período que varia entre três e dez anos. Segundo o testamento, Maria de Lourdes ficaria com 60% do que foi deixado por Cionyra. Já para Gilcilene, restariam os outros 40%.
Vítor Hollup alega que a tia não estava lúcia quando fez o segundo documento. Ele disse que, quando a secretária deu entrada no hospital, no dia 26 de março de 2018, meses antes de morrer, já apresentava estado de demência avançada, conforme consta em um boletim médico. O documento foi anexado ao processo, onde consta um pedido de anulação do segundo testamento.
— Minha tia era cadeirante havia mais de dez anos e estava desorientada com a morte do marido. Ela estava com demência e não tinha condição de decidir sobre um novo testamento. Ela foi enganada — disse Vitor Hollup, acrescentando que era muito ligado aos tios e os visitava pelo menos três vezes por mês.
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O advogado responsável por defender os interesses do professor disse que já entrou com um pedido para o apartamento ser desocupado pela cuidadora. Segundo ele, o imóvel acumula dívidas.
— Pedimos no processo da anulação deste segundo testamento uma liminar para desocupação do imóvel. Uma das cuidadoras está residindo lá desde 2019. Não estão pagando IPTU, condomínio e nem taxa de incêndio. Até setembro a dívida do imóvel era de mais de R$ 132 mil — completou o advogado Carlos Eduardo Cordeiro de Oliveira, que desde o dia 3 de setembro último defende os interesses Vitor Hollup no processo que tramita no juízo da 12ª vara de Órfãos e Sucessões da Capital.
O GLOBO falou por telefone com Gilcilene Souza Martins, uma das cuidadoras que trabalhou com o casal. Ela confirmou estar morando no apartamento deixado por sua ex-patroa. Mesmo sem saber precisar um valor exato, a cuidadora admitiu a existência de dívidas de condomínio. Ela afirmou que tenta encontrar uma maneira de quitar os débitos. Sobre a herança, Gilcilene disse que Cionyra afirmava que não queria deixar nada para o sobrinho. E rebateu a versão de que a idosa não estava mentalmente bem.
— Ela foi até o cartório e estava muito lúcida. Eu entrei em contato (com o cartório) porque ela pediu. Ela disse que queria doar para nós duas, eu e a Lourdes e que não queria doar nada para o Vítor. Ele quase não ia no apartamento. Quando ia era sempre correndo, porque estava com pressa. O caso é que a dona Cionyra se revoltou contra ele. Porque ele demorou a ir socorrer o seu Tadeusz quando ele passou mal- disse.
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Responsáveis pelos interesses da cuidadora Maria de Lourdes Barbosa Soares, os advogados Luiz Gustavo Lança de Freitas e Karen Martins Costa, disseram que as duas cuidadoras tinham um ótimo relacionamento com Cionyra. Sobre o testamento, um dos advogados informou que tudo foi feito dentro da legalidade e afastou a hipótese de que a secretária estivesse com a saúde mental prejudicada quando o segundo testamento foi lavrado. Ele também reforçou que a relação entre a tia e o sobrinho não era das melhores.
— Até onde sei foi tudo feito obedecendo todos os trâmites legais, sem qualquer vício, sem qualquer problema. O cartório não faria(o segundo testamento) se ela (Cionyra) não estivesse lúcida. O que tenho de notícia é que o sobrinho não era uma pessoa presente. Algumas pessoas disseram que ele não comparecia no prédio para visitar a dona Cionyra. E que o relacionamento dos dois não era dos melhores. É o que gente tem de notícia— disse o advogado Luiz Gustavo.
O Ministério Público do Rio de Janeiro(MPRJ) opinou pela realização de uma prova pericial indireta para estabelecer o estado mental de saúde da secretária no período em que o segundo testamento foi feito. Em fevereiro de 2025, a Justiça determinou que uma perícia indireta fosse feita, baseada em laudos médicos, para saber se Cionyra Ceres tinha ou não discernimento para fazer o segundo documento, na data em que ele foi lavrado em cartório.
Um perito chegou a ser nomeado, mas acabou se declarando incapaz de realizar o exame já que era especializado em outra área. O caso aguarda a escolha e a respectiva nomeação de um novo especialista. Enquanto o pedido de anulação não é julgado, segue valendo o testamento que indica as duas cuidadoras como herdeiras da parte deixada pela secretária aposentada da Petrobras.
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Em outra frente, o MPRJ abriu uma investigação na 1ª Central de Inquéritos para apurar se houve alguma responsabilidade das cuidadoras pelo declínio do estado de saúde da secretária.
Procurada para falar sobre os procedimentos necessários para uma pessoa idosa fazer um testamento em um cartório, a Corregedoria de Justiça informou que em processos administrativos precedentes, os cartórios não podem exigir atestado médico de sanidade mental para idosos, sob pena de caracterizar-se etarismo e provável infringência ao Estatuto do Idoso.
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Segundo a Corregedoria, em 2018, quando o documento foi lavrado, não havia a prática de atos remotos, portanto tudo era feito nessa data obrigatoriamente de forma presencial. Isso, no entanto, mudou.
Segundo o órgão, o provimento da Corregedoria Geral de Justiça nº 69 de 2021 passou a estipular gravação em vídeo para a lavratura de escrituras públicas quando pelo menos uma das partes tiver mais de 80 anos. A exigência passou a vigorar em 2021, posterior aos atos praticados em 2018.