Há pouco mais de um quarto de século, no Armazém 14, no Recife, estreava “A máquina”. No começo dos anos 2000, o público se encontrou pela primeira vez no palco com Antônio, vivido pelos então desconhecidos Wagner Moura, Lázaro Ramos, Vladimir Brichta e Gustavo Falcão. Na história, o jovem sertanejo constrói, do ferro-velho, uma engenhoca capaz de viajar pelo tempo. Com ela, busca evitar que sua amada Karina, febril para “ver o mundo”, abandone Nordestina, lugarejo onde vivem e aparentemente nada acontece. À época, o papel foi de Karina Falcão, irmã de Gustavo. Com uso engenhoso do cenário, o enamorado viaja décadas à frente para capturar o progresso e trazê-lo para casa. Mas o que ele encontra, naquele longínquo 2025, o deixa de queixo caído.
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O que a visão do futuro de Antonio não incluía era uma volta ao seu início. Pois é o que finalmente fará João Falcão, responsável pela adaptação cênica do romance de sua então companheira, Adriana Falcão. O sucesso que deslanchou a carreira de tanta gente ótima volta à vida a partir desta quinta-feira no Teatroiquê, no Butantã, em São Paulo, onde fica até dezembro, antes de partir para outros endereços em 2026, entre eles o Rio.
De volta ao passado, o ano 2000 adentrou na cena cultural brasileira com o inescapável boca a boca sobre a nova peça do diretor do momento, que assinara os sucessos “O burguês ridículo” (1996), “Uma noite na Lua” (1998), com Marco Nanini, e “A dona da história” (1997), com Marieta Severo e Andrea Beltrão.
Falava-se do lirismo do texto de “A máquina”. Da encenação inovadora de João, que unia malabarismo circense ao cordel, ao rádio e a uma ficção científica de sabor propositadamente regional. Da trilha sonora de um certo DJ Dolores, muito antes de estourar com a Orchestra Santa Massa e “A dança da moda”. E, claro, das atuações de tirar o fôlego.
— Dirigi o Vlad no teatro em 1998 em “A ver estrelas” e, quando começamos a pensar em “A máquina”, ele me disse que eu precisava ver um ator sensacional em Salvador. Obedeci, claro, e me embasbaquei com o Wagner. Este, por sua vez, me contou que gigante, lá, se chamava Lázaro, também tinha que vê-lo. E foi inesquecível. Gustavo, meu sobrinho, já tinha trajetória no Recife que me impressionava. Quando terminei a lição, falei para a Adriana: o Antonio tomará vida na forma de quatro atores e construirei o espetáculo a partir dessa ideia — conta o diretor ao GLOBO.
Veja cenas da nova montagem de ‘A máquina’, que estreia 25 anos após o espetáculo original
Assim se fez. Vladimir, Wagner e Gustavo tinham 26 anos. Lázaro, 24. João, 40. A energia e o burburinho foram tais que elevaram por meses o preço das passagens aéreas para a capital pernambucana. No mesmo ano o espetáculo seguiu para Rio e São Paulo, em temporadas curtas e disputadas, além de aparecer nos cardápios dos festivais de teatro de Curitiba e Belo Horizonte. E só.
— Era bem mais complicado naquela época abrigar nosso palco giratório e o cenário de mais de 600kg. E “A máquina” foi muito mais elogiada do que de fato vista —diz João.
História que começa a mudar nesta quinta-feira. Por si só um acontecimento, a versão 2.5 de “A máquina” foi turbinada com o retorno de Gustavo, que assina a codireção e a preparação corporal. E por um elenco de Antônios formado por Alexandre Ammano, Bruno Rocha, Marcos Oli e Vitor Britto, do coletivo Ocutá, premiado pela versão teatral de “O avesso da pele”, a partir do livro de Jeferson Tenório.
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— Estávamos há dois anos em cartaz, felizes, mas chegara a hora de experimentar outros temas e linguagens. “A máquina” é uma montagem emblemática do teatro brasileiro, o universo lúdico e poético do livro nos fascinou, tomamos coragem e fomos atrás deles. Quase não acreditamos quando foi dando certo— conta Vitor Britto.
João e o produtor Clayton Marques já pensavam em reapresentar “A máquina” no palco para gerações que só tomaram contato com o livro e o filme homônimo, dirigido pelo próprio encenador em 2006, com Paulo Autran na pele do Antonio do futuro e Mariana Ximenes na de Karina. Mas a ideia inicial era voltar aos teatros com o elenco original. O problema era a agenda, inclusive internacional, dos protagonistas.
Após uma leitura com os atores do Ocutá na casa do diretor em São Paulo e a bênção formal de Wagner, Lázaro, Vladimir e Gustavo, incluindo um encontro recente e emocionante em carne e osso dos oito Antônios, a nova “A máquina” começou a funcionar.
Para viver Karina, João convocou Agnes Brichta, elogiada nos pacos cariocas por, entre outros papéis, sua versão de Cleanto, o personagem do clássico “Tartufo”, de Moliére, na montagem de Bruce Gomlevsky de 2023. Filha de Vladimir, ela tinha apenas 3 anos quando “A máquina” original foi encenada. Uma das muitas lembranças felizes de João da época era a de Agnes zanzando pelo Armazém 14 durante os ensaios.
— “A máquina”, que vi em vídeo, se tornou minha peça favorita, e nos papos com meu pai queria saber cada detalhe da encenação. Ele me falou como é possível e crucial neste caso, junto com todo o investimento nos personagens, inclusive físico, se divertir em cena. Estava certíssimo. Passei anos elucubrando sobre como seria viver a Karina e é ainda mais divertido do que imaginei — diz a atriz.
Diferentemente do original, os quatro Antônios da versão 2.5 são um coletivo de fato. Alexandre Ammano, Bruno Rocha, Marcos Oli e Vitor Britto ensaiaram enquanto apresentavam “O avesso da pele”, em processo distinto do da “clausura privilegiada” (nas palavras de João Falcão) dos tempos do Recife.
Vladimir Brichta, Gustavo Falcão, Wagner Moura e Lázaro Ramos viveram em ritmo comunitário, quando dividiram apartamento e cotidiano de forma visceral.
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Perguntado pelo GLOBO sobre que imagem lhe viria de bate-pronto se pudesse entrar na máquina do tempo de Antônio e voltar para o ano 2000, Vladimir nem piscou:
— Lembro do meu braço quebrado e do encontro muito potente de pessoas muito jovens, dispostas a fazer algo que pudesse de fato alterar e afetar nossas vidas. Eu vinha de processos intensos e dolorosos de minha vida, e iniciar aquele mergulho foi também um desejo de virar a página e começar algo novo, encantador, promissor — conta.
Lázaro fez um paralelo direto entre personagem e jovens atores.
— O jovem sonhador que era o Antônio foi muito alimentado pelos jovens sonhadores que éramos e nosso desejo de viver o teatro 24 horas por dia. Ensaiávamos o dia todo, morávamos juntos, e nas pausas íamos juntos para o fundo do Armazém 14 — diz.
Wagner, no turbilhão da estreia de seu retorno aos palcos, em Salvador, enviou mensagem de texto, nem por isso menos comovida com o tempo e a arte: “‘A máquina’ foi fundamental, dessas coisas que acontecem uma ou duas vezes na vida. Ela nos uniu, nos constituiu como uma família. E também nos abriu as portas do mundo, numa conexão com o que a peça é. O menino queria trazer o mundo para a cidade e a namorada dele, ‘A máquina’ trouxe o mundo pra gente”.
O diretor de “Marighella” segue: “Sempre quis que tivesse uma nova montagem. Primeiro porque eu queria ver a peça (risos), na plateia. E segundo: pois fico sempre pensando que o quanto ela foi bonita para nós pode ser para esses jovens atores agora. Nós não somos mais esses meninos. Para fazer ‘A máquina’ é preciso ter esse espírito que esses jovens lindos têm.”
João Falcão também lembra que, por infelicidades diversas, além de Vladimir, todos na época enfrentaram perdas pessoais, duríssimas, como a morte da primeira esposa de Lázaro e dos pais de Gustavo e Karina. E que, justamente por isso, a alegria foi o imperativo dos momentos em que dividiam, em grupo, no vaivém do tempo lírico de “A máquina”. Traduzida especialmente nos jogos de cena e na esperteza inclusiva do sertanejo, essa alegria se tornou, para todos, o ingrediente central na receita vencedora de “A máquina”.