- Míriam Leitão: Ouro vira refúgio em 2025 enquanto dólar perde força e deixa de ser porto seguro
- Às vésperas de encontro entre Trump e Xi: China anuncia novos controles para terras-raras
Pequim já vem acumulando reservas há uma década, formando um estoque de ouro que provavelmente é o sexto maior do mundo. Agora, a ascensão vertiginosa do metal está fortalecendo essa estratégia. Na quarta-feira, o ouro ultrapassou pela primeira vez a marca de US$ 4.000 por onça, em parte graças às políticas erráticas do presidente Donald Trump dentro e fora do país.
Essa disparada histórica colocou o ouro no centro das atenções em meio a crescentes tensões internacionais e lealdades em declínio — e as autoridades estão aproveitando o momento.
Até agora, neste ano, Pequim reforçou o papel de Hong Kong como centro comercial doméstico com o primeiro cofre offshore da Bolsa de Ouro de Xangai (Shanghai Gold Exchange). Também tem buscado atrair outros países para armazenar ouro nos depósitos alfandegários da China. O próximo passo deverá ser incentivar bancos centrais e fundos soberanos a negociar o metal que guardam — assim como fazem em Londres —, minando gradualmente os centros financeiros mais consolidados do mundo.
— Todos os fatores estão alinhados: os países estão diversificando reservas, a volatilidade geopolítica está elevada, e os sistemas e meios de pagamento alternativos estão em ascensão — disse Ding Shuang, economista-chefe para a Grande China e o Norte da Ásia no Standard Chartered. — A China já é o maior produtor de ouro do mundo. Agora quer fortalecer seu papel no sistema financeiro num momento em que há menos resistência.
O ouro é uma forma de atingir múltiplos objetivos de uma só vez. Assumir uma fatia maior do mercado mundial de ouro aproximaria Pequim do papel internacional que acredita merecer. O metal também daria suporte ao uso do yuan como moeda internacional e poderia até impulsionar Hong Kong.
- Na China: Encontrada mil toneladas de ouro em província; descoberta é avaliada em R$ 400 bilhões
Mais importante ainda, isso permite que a China ofereça uma alternativa à dominância financeira dos Estados Unidos, num momento em que Washington intensifica o uso de sanções e afasta até parceiros comerciais de longa data.
O preço do ouro quadruplicou aproximadamente em uma década, ultrapassando US$ 2.000 durante a pandemia e depois US$ 3.000 em março, quando pairava a ameaça das tarifas impostas por Trump. E, agora, o novo patamar inédito de US$ 4.000. Todos, de autoridades governamentais a compradores de barras de ouro em varejistas como a Costco, estão sentindo o impacto.
O impulso para essa alta épica veio, em parte, com o surgimento dos fundos negociados em bolsa (ETFs) no início dos anos 2000, que tornaram muito mais fácil investir no metal, e, mais tarde, com o entusiasmo dos bancos centrais. Estes responderam por mais de um quinto da demanda global no ano passado — em contraste com uma média próxima de um décimo na década de 2010.
Mais recentemente, houve também a perspectiva de maior inflação e juros mais baixos. Nesta semana, preocupações com o aumento da dívida pública e, depois, com a turbulência política em Washington deram ao ouro o impulso final para superar US$ 4.000 por onça.
- Sob Trump: Ouro bate recorde não visto desde a recessão de 1980
À medida que investidores do Japão ao Reino Unido adotam a chamada “aposta contra a desvalorização”, afastando-se das moedas e migrando para ativos como metais preciosos ou bitcoin, a prata também se beneficiou, aproximando-se de sua própria marca recorde, em torno de US$ 50 por onça.
Para os formuladores de políticas — inclusive em Pequim —, os preços elevados aumentaram o atrativo do metal como ativo de reserva e reforçaram a ideia de que, ao atrair mais ouro para sua esfera, a China pode tornar seu mercado e sua moeda mais atraentes, em um momento em que os fluxos de entrada já estão melhorando.
— Se a China detiver mais ouro, haverá mais credibilidade no yuan — disse Guo Shan, sócio da Hutong Research, uma firma independente de análise. — Se eu for um investidor e quiser manter yuan, minha primeira pergunta seria: o que acontecerá com o valor se eu o conservar por muito tempo? E se houver uma crise? Eu saberei que o banco central é capaz de sustentar a moeda, se quiser.
O ouro também pode satisfazer o crescente interesse da China por ativos alternativos como forma de combater a dominância do dólar, com até mesmo as stablecoins (tokens digitais atrelados a moedas tradicionais) sendo consideradas.
Pequim há muito tempo demonstra cautela em relação às criptomoedas, que vê como uma ameaça à estabilidade financeira e ao controle de capitais, mas economistas agora veem uma janela de mudança, à medida que os Estados Unidos buscam reforçar seu controle sobre essa tecnologia nascente.
- Apoio financeiro: EUA prometem ajuda bilionária a agricultores que perderam vendas com guerra comercial contra China
O Banco Popular da China não respondeu imediatamente às perguntas da Bloomberg.
— A China está tentando tirar uma parte do sistema financeiro global do controle dos Estados Unidos— disse Iikka Korhonen, chefe do Instituto do Banco da Finlândia para Economias Emergentes, cuja pesquisa inclui China e Rússia.
Com Washington minando sua própria credibilidade, Pequim “pode ver uma oportunidade para intervir e criar um sistema paralelo baseado no ouro”.
Os formuladores de políticas chineses tomaram outras medidas para aumentar a influência do país nos mercados financeiros — afrouxando os controles de capital, lançando um sistema de pagamentos com Hong Kong e divulgando planos para permitir que alguns investidores locais apliquem mais recursos em ativos no exterior.
Sinais de revitalização do setor de tecnologia chinês também atraíram investidores globais para tudo, desde ações domésticas até títulos conversíveis.
- Apelo: Trump diz que pedirá a Xi que compre soja dos EUA em sua próxima reunião
Ainda assim, quando se trata de promover o uso do yuan e expandir a influência da China nos mercados financeiros — especialmente nos de commodities, que o país consome em grandes quantidades —, o histórico é misto. Os contratos de cobre e petróleo denominados em yuan, por exemplo, possuem apenas uma fração da liquidez dos referenciais internacionais negociados em dólar.
Embora mais transações transfronteiriças de Pequim agora sejam liquidadas em yuan, o país ainda está longe de dominar o comércio entre nações terceiras.
A conta de capital do país ainda não está totalmente aberta, e o yuan pode ser fortemente influenciado pelo Banco Central. As autoridades chinesas controlam a maior parte dos canais de saída de capitais por meio de um sistema de cotas, como aquele que permite que instituições qualificadas do mercado interno invistam em ativos no exterior.
No mercado de ouro, Xangai é uma alternativa notável aos sistemas de liquidação em dólar — mas, mesmo ali, a liquidez ainda fica atrás de Londres.
O maior centro de negociação de ouro do mundo parece ser a principal inspiração por trás da estratégia chinesa.
No auge do Império Britânico, o ouro extraído em várias partes do mundo era enviado à capital para liquidação, beneficiando-se — e, ao mesmo tempo, fortalecendo — as redes jurídicas, financeiras e comerciais.
A cidade possuía os cofres, e depois estabeleceu padrões de refino e referenciais de preço. O “London Good Delivery Standard”, que garantia que o ouro tivesse determinado nível de pureza e viesse de uma lista de refinarias credenciadas, tornou possível a negociação de grandes volumes de forma eficiente. E quanto mais ouro trocava de mãos, mais fortunas eram feitas — e mais participantes internacionais eram atraídos para o sistema.
- Na Argentina: Governo Milei vive dias de tensão à espera de um socorro financeiro de Trump
Hoje, Londres continua sendo o maior mercado à vista de ouro do mundo. A China ainda está atrás, mesmo dez anos depois de ter permitido a entrada de investidores internacionais nas negociações de yuan em Xangai.
— Muitos dos fatores por trás da posição de Londres são legados de longo prazo — disse Adrian Ash, diretor de pesquisa da BullionVault, uma plataforma de negociação de metais preciosos. — Isso será difícil de superar, porque a liquidez vai onde a liquidez já é mais forte.
Um dos pilares desse sucesso que chamou a atenção de Pequim é o ouro armazenado na cidade para outros bancos centrais, que guardam suas reservas em cofres de custódia e frequentemente negociam ou emprestam parte desses ativos.
Atualmente, há mais de 8.800 toneladas de ouro armazenadas em Londres, tornando o Banco da Inglaterra o segundo maior custodiante de ouro do mundo, atrás apenas do Federal Reserve de Nova York.
É exatamente isso que a China busca replicar.
- Sob pressão do tarifaço: Lula levará empresários a Ásia enquanto tenta confirmar encontro com Trump para negociar
No início deste ano, Pequim começou a convidar bancos centrais a comprar ouro e armazená-lo em cofres ligados à Bolsa de Ouro de Xangai (Shanghai Gold Exchange), seu principal centro de negociação.
A motivação é simples: ao se tornar guardião de reservas estrangeiras, o país pode ter uma voz mais influente no mercado. E pode avançar significativamente na construção de uma arquitetura financeira menos dependente do dólar.
O poder dos centros históricos de ouro já vem sendo questionado há algum tempo, com vários países, incluindo a Alemanha, repatriando ouro por motivos de segurança ou sob pressão política. Polônia, Holanda e Sérvia também adotaram medidas semelhantes.
A proposta da China tende a ser atraente diante do desejo crescente por um sistema político e econômico não ocidental, imune a sanções — um guardião alternativo para países como os dos Bris, grupo que passou de uma tese de investimento a um bloco real que hoje representa 40% da economia mundial.
Poucos aliados da China precisarão ser lembrados de que um estoque de ouro da Venezuela está congelado há anos no Banco da Inglaterra.
- Efeito: China desdenha da soja dos EUA após tarifas de Trump, e agricultores agora têm um problemão
A África do Sul, nação integrante dos Brics que vem aprofundando seus laços econômicos com Pequim, afirmou que consideraria armazenar suas reservas em qualquer local que fosse considerado ideal.
“Ainda é cedo para avaliar se o sistema alternativo atenderá aos mesmos critérios”, disse o Banco de Reserva da África do Sul em resposta por e-mail, acrescentando que manter o ouro em centros estratégicos permite ao banco administrar ativamente as reservas, ao mesmo tempo em que garante que o metal seja aceito globalmente.
Permitir que bancos centrais negociem e emprestem ouro em formato de lingotes (bullion banks) na Bolsa de Ouro de Xangai (Shanghai Gold Exchange) seria o próximo passo lógico para a China, afirmou Adrian Ash, da BullionVault.
— Dadas as ambições da China, isso faria sentido — disse ele.
Outras instituições, porém, mostram-se mais cautelosas. O Banco Nacional da Sérvia respondeu que as preocupações geopolíticas pesam na decisão, mas destacou que repatriou a maior parte do seu ouro do exterior e deseja “aumentar a disponibilidade e a segurança das reservas de ouro em tempos de crise e incerteza.”
- Compromisso: BNDES e China firmam acordo para fundo de R$ 1 bi para investimentos em transição energética, IA e mais
Até o momento, ao menos um país do Sudeste Asiático demonstrou interesse no plano da China, segundo pessoas familiarizadas com o assunto, que pediram anonimato devido à sensibilidade das discussões.
A história recente está pressionando Pequim a agir.
A China tem uma longa tradição de observar e aprender com a Rússia, desde a época da União Soviética — afinal, poucos estudaram aquele colapso com tanta atenção. Pequim tem sido igualmente meticulosa em analisar a fortaleza financeira resiliente construída por Vladimir Putin na última década — uma proteção contra sanções que causou certa inquietação em Pequim quanto à sua própria dependência contínua do dólar.
O ouro acumulado pelo Banco Central da Rússia, que se tornou um dos principais compradores do metal ao reduzir sua exposição ao dólar após a anexação da Crimeia em 2014, quando os preços ainda eram modestos, tem sido um fator-chave da estabilidade financeira de Moscou desde 2022.
Embora o ouro não tenha sido vendido, ele permitiu que Moscou enfrentasse o congelamento das reservas estrangeiras mantidas fora do país, uma medida sem precedentes adotada por governos ocidentais. Também ajuda o fato de que o metal aumentou dramaticamente de valor desde o início da guerra, com os preços mais que dobrando.
O ouro é considerado um recurso estratégico para Moscou, segundo um relatório encomendado pelo Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido e publicado no ano passado pelo think tank Rand Europe. O metal tornou-se uma parte crucial das relações comerciais em tempos de guerra.
— O ouro é visto como uma espécie de resposta à incerteza econômica de 2022 e 2023 — disse o analista John Kennedy, que liderou a pesquisa.
Por sua vez, a China vem aumentando suas reservas de ouro em várias etapas desde pelo menos 2015, ano a partir do qual seus registros passaram a ser atualizados com mais regularidade. Já são 11 meses consecutivos de compras. Esse movimento ocorre ao mesmo tempo em que o país reduz suas participações em títulos do Tesouro dos Estados Unidos — no fim de julho, esses investimentos estavam 41% abaixo do nível registrado no final de 2015.
Alguns analistas afirmam que nem todas as compras de Pequim são divulgadas, mas, mesmo considerando apenas os números oficiais, ainda há espaço para acumular mais — o ouro representa menos de 9% das reservas totais, em comparação com uma média global de cerca de 20%, segundo o Conselho Mundial do Ouro (World Gold Council). As reservas dos EUA, de longe as maiores do mundo, são mais de três vezes maiores.
O preço do metal também deve continuar atraindo a atenção de Pequim. Sua ascensão vertiginosa colocou o mercado em território inexplorado, mas, mesmo que parte desse brilho imediato se dissipe nos próximos dias, as principais forças que impulsionaram a alta permanecem.
Os bancos centrais devem continuar diversificando suas reservas, e os investidores privados também têm espaço para ampliar sua participação — as posições em fundos negociados em bolsa (ETFs) lastreados em ouro ainda estão bem abaixo do pico de 2020. O Goldman Sachs estima que, se apenas 1% dos títulos do Tesouro detidos por investidores privados migrar para o ouro, o preço pode alcançar US$ 5.000 por onça.
—A China está falando sobre sistemas de pagamento alternativos com um novo nível de confiança — disse John Kennedy. — O ouro é uma parte fundamental disso.