Botafogo foi incluído no guia britânico Time Out na 29ª posição entre os 39 bairros mais descolados do mundo. Mas é também o quarto colocado em reclamações de pertubações ao sossego protocoladas até 19 de agosto deste ano (últimos dados disponíveis) na central 1746, da Prefeitura do Rio. Perde apenas para Camorim, Copacabana e Barra da Tijuca.
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A briga pelo direito ao silêncio, garantido por lei, se mostra aguerrida num cenário em que os “baixos” se expandem. As queixas de barulho ao 1746 duplicaram na cidade. Somaram 9.370 em 2024, enquanto de janeiro a 19 de agosto último já totalizavam 19.639. E, no ranking de todos os registros da plataforma, subiram de colocação: de 18º para 9º, do ano passado para 2025. Os dados são do Data.Rio, portal do município, e foram compilados pelo geógrafo Hugo Costa a pedido do GLOBO:
— Dos 50 endereços com mais reclamações este ano, 94% já tinham queixas no ano passado, que persistem.
Moradores apontam como justificativas para o crescimento tão alto desses números o avanço de bares para as ruas e a fiscalização deficiente. É o caso de Virgínia Fernandes, diretora da Associação de Moradores e Amigos do Leblon. Ela conta que, há algumas semanas, após publicação de vídeo no Instagram, um bar da Dias Ferreira — está em 57º lugar este ano entre as ruas com mais reclamações—, no Baixo Leblon, foi multado. Uma ação insuficiente, diz ela, em relação ao tamanho do problema:
— Cada vez piora mais. Virou moda as pessoas ficarem em pé na rua. A tendência dos bares tem sido a de alugar lugares pequenos, porque acabam se expandindo, tanto com a colocação de mesas e cadeiras em calçadas e vagas, que passou a ser autorizada, quanto para o meio da rua. Quando os bares fecham, chega o pessoal do delivery, e a confusão continua. Imagina como a situação vai ficar no verão.
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Entre especialistas, a psicóloga clínica Francilene Torraca, doutoranda pela UFRRJ, entende que o aumento expressivo das queixas “tem relação direta com o estado emocional coletivo que vivemos hoje”:
— Depois da pandemia, muitas pessoas passaram a valorizar mais o silêncio, a rotina e a sensação de segurança em casa. Ao mesmo tempo, estamos mais ansiosos, irritáveis e sobrecarregados emocionalmente, o que reduz a tolerância a qualquer tipo de estímulo externo, como barulho, festa ou vizinho inconveniente. A psicologia chama isso de redução do limiar de tolerância ao estresse. Além disso, há uma mudança social e comportamental importante: as pessoas estão mais conscientes dos seus direitos e dispostas a expressar incômodos.
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Além de se manifestar através do canal oficial e buscar contato com os órgãos responsáveis, vizinhos do barulho estão adotando outras medidas para enfrentar a batalha. Um morador da Rua Fernandes Guimarães, em Botafogo — a 12ª com mais queixas este ano, numa lista que tem nas primeiras posições a Estrada dos Bandeirantes, que corta vários bairros da Zona Sudoeste; a Rua Dias da Cruz, no Méier e Engenho de Dentro; e a Avenida Olegário Maciel, na Barra — colocou janela acústica no apartamento. O que não basta.
— Dormimos com tudo fechado, ar e TV ligados. Se desligar a televisão, mesmo com a janela acústica, dá para ouvir o som, porque as paredes não têm tratamento acústico. A bagunça começa quarta, quando tem jogo, e vai até domingo. Os bares fecham por volta das 3h da madrugada nos dias mais movimentados. Depois, o pessoal fica até 5h, 6h, consumindo com os ambulantes. Fecham a rua. Até carro de polícia tem dificuldade de passar — conta o morador, que pede para não ser identificado, com medo de represálias.
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Diante da balbúrdia, a administradora Michele Elias, moradora da Arnaldo Quintela — eleita a 8ª rua mais legal do mundo em 2024 pela Time Out — precisou procurar um psiquiatra para que receitasse remédio para dormir.
— É barulho por todos os lados. Têm música ao vivo, caixas de som. Minha filha, de 8 anos, não consegue dormir no quarto dela, onde o barulho é pior. Para que ela e meu marido durmam, é preciso ligar a TV nas alturas — conta Michele. — Os bares sempre falam que o movimento traz segurança. Mas, na quinta passada, a farmácia embaixo do meu prédio foi assaltada às 21h47.
Desde 2017, a responsabilidade por fiscalizar o barulho no Rio passou a ser da prefeitura. Mesmo assim, com 100 mil ligações, a perturbação do sossego continua sendo o top 1 nos chamados do 190, controlado pela Polícia Militar.
Da Zona Sul para a Zona Norte, o descontentamento faz eco. Desde maio, um morador da Rua Bariri — 69º lugar em queixas ao 1746 —, em Olaria, reclama do Bariri 22, um bar com cobertura de alumínio, que tem música ao vivo na calçada, especialmente às sextas e aos sábados. Dos 17 protocolos do morador que constam da central até agosto, cinco informam que o estabelecimento foi orientado.
— São meses orientando, e o barulho continua. No dia 28 de setembro, à 1h da madrugada, com a janela do meu quarto fechada, medi com meu decibelímetro 71 decibéis — reclama o vizinho, que pede anonimato. — Vou vender o apartamento. Gosto do lugar, mas a saúde da minha família é mais importante.
Um dos sócios do Bariri 22, que se apresentou apenas com Rafael, conta que guardas municipais estiveram no local e garante que abaixou o som. Ele também tem suas queixas:
— Já jogaram ovo e até pedra na cobertura de alumínio e nos carros. Poderia ter machucado alguém.
Ainda no subúrbio, na Avenida Brás de Pina — 11ª entre as ruas com mais reclamações —, o Baixo Vista Alegre se destaca pela quantidade de bares com música ao vivo e som ambiente, e carros estacionados com rádios num volume alto.
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— Fecho a janela e ligo o ventilador para conseguir dormir. O que incomoda mais é o barulho das motos nos dois sentidos — destaca Rogéria dos Santos, que se mudou para a Brás de Pina há cinco anos.
Com um decibelímetro, O GLOBO mediu entre 22h25 e 22h35 da última quinta-feira, quando a frequência era baixa por causa do frio, até 91.4 decibéis na calçada do lado oposto a bares com música ao vivo, quando o máximo permitido após às 22h em áreas comerciais é de 65 decibéis. Também mantendo distância, foram medidos 82.7 decibéis na esquina das ruas Fernandes Guimarães e Arnaldo Quintela, às 23h35; e 83.8 decibéis no cruzamento das ruas Dias Ferreira e General Venâncio Flores, à meia-noite e meia.
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Em nota, o presidente do Sindicato de Bares e Restaurantes do Rio de Janeiro (SindRio), Fernando Blower, ressalta que a entidade busca soluções para a boa convivência. “Buscamos orientar e informar para que os negócios do setor possam continuar crescendo e prosperando, sempre em harmonia com a sua vizinhança”, destaca.
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Operação ‘Ruído Zero’
Este ano, fiscais da Secretaria municipal de Ordem Pública (Seop) e guardas municipais aplicaram 419 multas, notificaram 1.215 estabelecimentos e cassaram seis alvarás por perturbação do sossego — existe mais um processo em tramitação. Em 2024, foram três espaços fechados.
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Segundo o secretário Marcus Belchior, não houve licenciamento de novos bares e boates que pudesse justificar o crescimento das queixas este ano. Ele acredita em mudança de comportamento, tanto positiva, no que diz respeito à civilidade dos denunciantes, quanto negativa, em relação ao desrespeito ao próximo.
A pasta está estruturando uma operação, batizada inicialmente de “Ruído Zero”. Entre outras iniciativas, a ideia é que sejam realizadas blitzes em pontos com grande concentração de bares.
— Vamos buscar soluções tecnológicas e aumentar as ações de conscientização e a fiscalização. A operação terá várias vertentes, entre elas a da conscientização. Reforço que o cidadão continue denunciando, acreditando no 1746 — diz Belchior.