— Há considerações acontecendo agora na área controlada pelas FDI (sigla usada para as Forças Armadas de Israel) — disse Kushner, defendendo a visão de uma “nova Gaza” que permita dar aos civis “um lugar para ir, um lugar para conseguir empregos, um lugar para viver”.
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Na prática, segundo avaliação do jornal israelense Haaretz, a declaração indica que não foi completamente abandonada a ideia de uma “cidade humanitária” em áreas controladas por Israel, algo discutido pelo Gabinete do premier Benjamin Netanyahu há alguns meses e criticado por especialistas como um crime de guerra. Também, ainda segundo análise do Haaretz, se a reconstrução realmente começar enquanto o Exército de Israel ainda detém o controle de 53% do território — ao ter recuado para uma primeira linha prevista no plano de cessar-fogo de Donald Trump—, pode cimentar a situação atual no terreno, prevenindo uma retirada completa no futuro.
Os dois anos de guerra no enclave causaram quase 70 mil mortes e uma destruição poucas vezes na História moderna. Estimativas da ONU apontam que em locais como a Cidade de Gaza, 92% das estruturas foram destruídas, e com 61 milhões de toneladas de entulhos.
— Creio que o exemplo mais próximo seja os bombardeios da Segunda Guerra Mundial, principalmente na Alemanha, que foi bastante destruída — afirmou ao GLOBO Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). — E uma dessas principais questões em Gaza, como foi na Alemanha, será a remoção desse entulho, dessas construções destruídas. É um trabalho importante e complexo a ser feito.
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Sob os prédios devastados, pode haver restos mortais de até 10 mil desaparecidos, além de substâncias nocivas e 7,5 mil toneladas de munições — segundo a ONU, 10% de todos os explosivos lançados sobre Gaza não foram detonados. Em uma terra arrasada, 2,1 milhões de pessoas dependem de ajuda, cuja entrada no enclave ocorre a conta gotas.
Persistem dúvidas sobre plano de Trump para Gaza
Na quinta-feira passada, a Autoridade Nacional Palestina deu uma estimativa para o custo da reconstrução: US$ 67 bilhões. Mesmo antes do número ser divulgado, a lista de interessados era ampla, incluindo o Catar — que atuou como mediador entre Israel e Hamas —, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos, a Turquia e os EUA.
— Isso envolve uma questão de projeção de poder, na qual os países que foram responsáveis pela reconstrução de Gaza esperam ter algum tipo de retorno político, econômico e geopolítico — opinou ao GLOBO Roberto Uebel, professor de Relações Internacionais da ESPM. — Aqueles que reconstruírem Gaza, que financiarem essa reconstrução, criam uma relação de dependência, e também um bolsão de influência no Oriente Médio.
Neste processo, o Catar saiu à frente. Após a assinatura da primeira fase do acordo, o premier, Mohammad bin Abdulrahman al-Thani, disse que estava pronto para liderar os esforços de reconstrução, e confirmou que equipamentos para a remoção de entulho começaram a entrar em Gaza. Segundo a ministra da Cooperação Internacional, Mariam al-Misnad, o objetivo “é restaurar a esperança e devolver a vida ao seu curso normal”.
Há um grande porém na presença do Catar em Gaza. O país abriga líderes do Hamas — e foi bombardeado por Israel em setembro — e não parece incomodado com sua participação em um futuro governo. Grupos pró-Israel acusam o emirado de financiar o grupo, e não querem o país envolvido no pós-guerra.
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Mas o Catar tem amigos influentes. Os laços com a família Trump e com Kushner eram intensos antes do retorno do republicano à Casa Branca, centrados em negócios nos setores imobiliário e financeiro. Em setembro, após atacar membros do Hamas em Doha, o premier israelense, Benjamin Netanyahu, foi obrigado a se desculpar por pressão americana.
— O fato de o Catar financiar em algum momento o Hamas ou conversar com diferentes atores não elimina o fato de que é uma relação muito íntima, não só com os EUA, mas com a família Trump — afirmou ao GLOBO Monica Herz, professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio. — E não podemos esquecer de como o governo Trump não estabelece nenhuma separação entre o público e o privado. Essa fronteira foi diluída.
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Pelo lado dos EUA, Kushner está envolvido em planos controversos para o futuro de Gaza. No ano passado, disse ver potencial nas propriedades à beira-mar, e sugeriu que a população fosse realocada durante a reconstrução. A ideia inspirou Trump, que em fevereiro defendeu uma “Riviera” no território, com a expulsão dos moradores. Em setembro, foi associado a um projeto para a “Gaza do Futuro”, com cidades tecnológicas e — mais uma vez — a realocação “voluntária” dos civis, um crime de guerra.
— A reconstrução pós-guerra é um investimento interessante para esse setor de construção civil e imobiliário de uma forma geral — afirma Herz. — Neste caso em particular, o nível de destruição é de tal ordem que perguntamos qual será a relação entre essa Gaza reconstruída e a História palestina naquela região?
No Parlamento israelense, há pouco mais de uma semana, Trump reiterou o papel das monarquias do Golfo na reconstrução, como o Catar, os Emirados Árabes Unidos — que se dizem prontos para participar dos esforços — e da Arábia Saudita. Mas o americano quer algo mais de Riad do que alguns bilhões de dólares: a adesão aos Acordos de Abraão, o plano para a normalização de laços com Israel, já firmado pelos Emirados, Bahrein e Marrocos. No mês que vem, Mohammad bin Salman, príncipe herdeiro saudita, visitará a Casa Branca, segundo a imprensa americana.
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Os sauditas, como os emiradenses, exigem o desarmamento do Hamas e sua exclusão de uma futura administração. Isso já causa tensões com o Catar e com a Turquia, que mantém laços com o grupo palestino e quer participar da reconstrução. O país cita sua experiência em nações que passaram por conflitos, como Afeganistão, Bósnia e Herzegovina e Kosovo, mas quer enviar tropas para proteger seus equipamentos e trabalhadores. Essa presença deve causar problemas com Israel — com quem Ancara tem péssimas relações — e com rivais do Hamas.
— É muito difícil pensarmos na reconstrução de Gaza se essa etapa, o desarmamento do Hamas, não for vencida. É como se fosse um pré-requisito — afirma Uebel. — O que vemos é que Israel continua atacando posições do Hamas, e o Hamas parece ter algumas divisões internas dentro de Gaza.
E há o fator Israel: a manutenção do cessar-fogo não está garantida, como visto no final de semana, quando Netanyahu afirmou ter lançado 153 toneladas de bombas sobre Gaza. Não há discussões sobre a retirada das forças israelenses, e falas como a de Kushner levantam questões se a Casa Branca quer mesmo ver todos os militares retornando para casa (como querem as nações árabes, que insistem em passos para um futuro Estado palestino).
— Acredito que o maior desafio não seja a reconstrução física de Gaza, mas sim a reconstrução política, que envolve atores muito complicados como Israel e o Hamas. Os outros países árabes vão tentar interferir no processo de reconstrução, trazendo seus interesses econômicos. Há um problema técnico, mas ele é superável. Mas as questões econômicas e políticas ainda são o maior problema — concluiu Bonduki.

