Em mais um — significativo — degrau na escalada militar que o presidente Donald Trump vem imprimindo na região, os Estados Unidos anunciaram nesta sexta-feira o envio do agrupamento do porta-aviões USS Gerald R. Ford para as águas da América do Sul, um dia após indicarem o início de manobras conjuntas com Trinidad e Tobago, país caribenho localizado a poucos quilômetros do litoral venezuelano, a partir de amanhã. O deslocamento da poderosa força naval marca um dos momentos de maior tensão recente na região, com a mobilização de forças americanas no Caribe, em meio a uma campanha de afundamentos de barcos supostamente usados por narcotraficantes em águas internacionais próximas à Venezuela e à Colômbia, cujos governos de esquerda são alvo de acusações de Washington de ligações com o narcotráfico.
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Nesta sexta-feira, o Pentágono anunciou que o 10º barco foi atacado, com seis mortes, elevando o número total de vítimas fatais no Mar do Caribe e no Oceano Pacífico para 46 desde o primeiro bombardeio em 2 de setembro. “Se você é um narcoterrorista contrabandeando drogas em nosso hemisfério, nós o trataremos como tratamos a al-Qaeda. Dia ou noite, mapearemos suas redes, rastrearemos seus homens, caçaremos você e o mataremos”, escreveu o secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth, em publicação na rede X. Na quinta-feira, Trump advertiu em entrevista coletiva que o próximo passo da ação americana será o início de operações terrestres, sem especificar exatamente onde ou quando.
O porta-aviões Gerald R. Ford faz parte de um agrupamento de ataque que inclui três contratorpedeiros (USS Mahan, USS Bainbridge e USS Winston Churchill), esquadrões de caça F-18 e helicópteros de combate MH-60. Eles se somam a forças militares já deslocadas para o Caribe, incluindo outros contratorpedeiros, um submarino e embarcações de desembarque anfíbio, além de jatos F-35 enviados a Porto Rico. Ao todo, os EUA já dispõem de 10 mil militares na região. O porta-aviões — descrito pela Marinha americana como “a plataforma de combate mais capaz, adaptável e letal do mundo” — e sua escolta estão atualmente no Mediterrâneo e devem levar de 7 a 10 dias para chegarem à América do Sul. Neste domingo, o contratorpedeiro USS Gravely chegará à capital de Trinidad e Tobago para manobras.
Em post na rede social X, o porta-voz do Pentágono, Sean Parnell, disse que o envio do porta-aviões ocorre “em apoio à diretriz do presidente de desmantelar as Organizações Criminosas Transnacionais (TCOs) e conter o narcoterrorismo em defesa da Pátria”.
Em reação, o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, acusou os EUA de estarem “inventando uma guerra” contra seu país, que, segundo ele, é “livre da produção de folha de coca, livre da produção de cocaína”.
— Eles estão inventando uma nova guerra eterna, prometeram que nunca mais se envolveriam em uma guerra e estão inventando uma guerra que nós vamos evitar — disse Maduro em transmissão de rádio e TV. — Os Estados Unidos inventam um relato extravagante, vulgar, criminoso e totalmente falso, já comprovadamente falso.
Por sua vez, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em viagem ao Oriente, criticou o bombardeio de embarcações de supostos narcotraficantes. Ele ressaltou a importância de se preservar a soberania dos países.
— É muito melhor os EUA se disporem a conversar com a polícias dos países, com o Ministério da Justiça de cada país, para fazermos ações conjuntas. Porque se a moda pega, cada um acha que pode invadir o território do outro para fazer o que quer, onde vai surgir a palavra “respeitabilidade” à soberania dos outros países? — disse ele na Indonésia.
Lula afirmou que caso a questão da Venezuela seja abordada no encontro com Trump previsto para ocorrer neste domingo às margens da cúpula da Associação de Nações do Sudeste Asiático, na Malásia, ele deve se posicionar como um intermediador, enfatizando o papel do Brasil como facilitador do diálogo na região. A estratégia de Lula será reforçar que o país pode atuar como zona de paz na América Latina, promovendo negociações e soluções diplomáticas em vez de confrontos diretos. A postura brasileira se baseia na necessidade de manter relações com um país que compartilha mais de 2 mil quilômetros de fronteira, mesmo sem reconhecer formalmente a vitória de Maduro na eleição de 2024.
Já o assessor especial de Lula para assuntos Internacionais, Celso Amorim, disse que uma intervenção externa na Venezuela é inaceitável e “pode incendiar a América do Sul”.
— Não podemos aceitar uma intervenção externa, pois isso provocaria um enorme ressentimento — disse Amorim, em entrevista à agência de notícias AFP. — Isso poderia inflamar a América do Sul e levar à radicalização da política em todo o continente.
Trump elevou as tensões na região ao sugerir, na quinta-feira, que iria autorizar ações terrestres contra grupos ligados ao tráfico de drogas internacional. O republicano equiparou cartéis latino-americanos a organizações terroristas nos primeiros dias do mandato, o que abriu espaço para que o Pentágono justifique o uso da força com base em critérios de excepcionalidade legais, embora isso seja contestado por analistas jurídicos.
Em meio à escalada de tensão, Washington conta com o apoio amplo do governo de Trinidad e Tobago, o único da região a expressar apoio a Trump e às operações contra o narcotráfico — apesar de possivelmente dois de seus cidadãos terem sido mortos em um desses ataques.
— Prefiro muito mais ver traficantes de drogas e armas explodidos em pedaços do que ver centenas de nossos cidadãos assassinados a cada ano por causa da violência de gangues alimentada pelas drogas — disse a premier Kamla Persad-Bissessar aos repórteres quando a campanha nos EUA começou.
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Ao apoiar a mobilização dos EUA, Persad-Bissessar diferenciou Trinidad de outros países da Comunidade do Caribe (Caricom), uma organização de mais de 20 nações caribenhas. Em meados de outubro, todos os membros da Caricom, exceto Trinidad, reafirmaram a posição do grupo de que o Caribe deve permanecer uma “zona de paz”, onde as disputas são resolvidas sem intervenção militar estrangeira.
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Alguns analistas em Trinidad destacam que o país precisa do apoio dos EUA para impulsionar sua produção de gás natural, fortalecendo sua economia. Além disso, embora grande parte da cocaína do mundo seja produzida na Colômbia, às vezes ela é contrabandeada pela Venezuela para Trinidad, que serve como um centro onde grandes remessas são recebidas, armazenadas, reembaladas e preparadas para transporte para a Europa, África Ocidental e Estados Unidos.
— Trindade serve como um ponto de partida dentro de uma cadeia de tráfico maior e bem estruturada — disse Garvin Heerah, um especialista em segurança trinitário.
A proximidade estratégica com a Venezuela, entretanto, também trouxe problemas para o país de cerca de 1,5 milhão de pessoas.
Logo após os EUA realizarem seu primeiro ataque em águas caribenhas em setembro, que deixou 11 mortos, um corpo apareceu na costa nordeste de Trinidad. Moradores disseram que o cadáver tinha marcas de queimaduras no rosto e faltavam membros, como se tivesse sido mutilado por uma explosão. Dias depois, as marés depositaram outro cadáver em uma praia próxima, atraindo uma onda de abutres. Seu rosto estava igualmente irreconhecível, e sua perna direita parecia ter sido arrancada.
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Vários moradores disseram que os cadáveres pareciam pertencer a homens com origens étnicas diferentes da maioria dos trinitários, descendentes em grande parte de africanos escravizados e servos contratados da Índia.
— Pareciam ser latinos. Meu palpite é que eram da Venezuela — disse Branil Lakhan, 23, que mora em um barraco de madeira perto da praia onde o primeiro cadáver foi encontrado.
Até o momento, ninguém reivindicou os corpos, que estão sendo mantidos em funerárias na região da capital, sem identificação, e nenhum governo estrangeiro solicitou sua repatriação.
Bishnu Ragoonath, um analista político em Trinidad, disse que o governo parecia ansioso para deixar a questão em segundo plano por causa de sua posição sobre os ataques dos EUA.
— Dizer que eles estariam abertamente preocupados com aqueles que foram mortos no processo seria contraintuitivo — disse.
Além dos corpos não identificados, as autoridades também estão investigando relatos de que dois trinitários estariam entre os mortos em um dos ataques dos EUA neste mês na região. Parentes dos homens, identificados como Chad Joseph e Rishi Samaroo, contestaram as alegações de que eles estariam envolvidos no tráfico de drogas.
O principal destaque da operação que começa no domingo é a chegada do USS Gravely, um contratorpedeiro de guerra da classe Arleigh Burke, ao porto da capital Port of Spain, que permanecerá na região até 30 de outubro.
Pertencente a uma das classes mais versáteis e temidas da frota americana, o USS Gravely tem 9,2 mil toneladas, 155 metros de comprimento e 20 metros de largura, podendo abrigar cerca de 300 oficiais, além de contar com dois hangares para helicópteros MH-60 Seahawk. O navio é equipado com o sistema de defesa Aegis, um complexo conjunto de sensores, radares, softwares e lançadores automáticos de mísseis que permite detectar e neutralizar ameaças simultaneamente por ar, mar e subsuperfície.
Entre os armamentos, o USS Gravely conta com mísseis Tomahawk (de ataque a longo alcance), mísseis antiaéreos e antissubmarino, além de sistemas de defesa antimíssil capazes de interceptar projéteis balísticos. O contratorpedeiro pode atingir velocidades de 56 km/h e operar em missões de ataque, defesa e escolta naval.
Autoridades de Caracas, incluindo Maduro, discursaram na quinta-feira, criticando as ações. Em um ato com sindicalistas pró-governo, Maduro fez um apelo em inglês para que a escalada de tensões não resultasse em uma guerra.
— Peace, yes peace, forever, peace forever, No crazy war! [Paz, sim paz, para sempre, paz para sempre. Sem guerra louca] — disse Maduro, antes de retomar o discurso em espanhol.
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Publicamente, o governo Trump afirma que a missão é combater o tráfico de drogas a partir da Venezuela, por conta do aumento recente de mortes por overdose nos EUA — embora isso tenha sido causado pelo fentanil, que vem de laboratórios no México. Além disso, a Venezuela é um ator relativamente menor no tráfico global de drogas em comparação com Colômbia, México, Bolívia ou Peru. Em particular, porém, autoridades americanas deixaram claro que o objetivo geral é expulsar Maduro do poder.
Em oposição direta ao governo chavista, a Casa Branca vem alimentando uma retórica hostil, inclusive apontando Maduro como chefe do Cartel de los Soles e oferecendo uma recompensa por informações que levem a sua captura. Em uma entrevista coletiva recente, Trump confirmou que autorizou a CIA a realizar operações secretas no país.
A resposta venezuelana à campanha americana tem sido promover uma mobilização militar constante e ampliar o recrutamento de reservistas. Há cerca de um mês, exercícios militares estão sendo realizados quase que diariamente, com treinamentos simultâneos em mais de 70 pontos da costa venezuelana apenas na quinta-feira. Maduro também já afirmou que suas Forças Armadas dispunham de 5 mil mísseis antiaéreos russos em ponto de uso, caso alguma ameaça se consolide.
O ministro da Defesa da Venezuela, Vladimir Padrino López, também prometeu responder com “defesa legítima” caso um ataque à Venezuela seja conduzido a partir do território de Trinidad. Antes dos ataques dos EUA no Caribe, Persad-Bissessar disse que daria às Forças Armadas americanas acesso ao território para defender a vizinha Guiana, que tem sido ameaçada pela Venezuela.
Com New York Times e AFP. Colaborou Eliane Oliveira

