A Belém que ressurge em “Pssica”, nova série da Netflix, impressiona por sua diversidade social e geográfica. Em um mesmo caldeirão urbano, o espectador transita entre a cidade e o rio, o engarrafamento de carros e os ataques de piratas fluviais, a selva de pedra e as palafitas. Antes de chegar à TV pelas mãos dos produtores Quico e Fernando Meirelles, essa perspectiva complexa já estava no livro homônimo de Edyr Augusto, um veterano da literatura policial que tem a capital paraense como cenário recorrente.
Nascido em Belém em 1954, o jornalista e escritor revolucionou o olhar do Brasil e do mundo sobre sua cidade natal. Seu romance de estreia, “Os éguas”, de 1998, não fazia concessões ao exotismo para retratar uma Belém modernizada e brutal. “Desconheço um livro regional, anterior ao fim da década de 1990, que tenha como cenário uma urbanidade amazônica tão decadente, decrépita, violenta e corrupta”, observou o escritor e pesquisador Relivaldo Pinho em seu livro “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia” (Edufpa).
Vieram depois, entre outros, “Moscow”, “Um sol para cada um”, “Selva concreta”, “Pssica” e “Belhell”, todos publicados pela Boitempo. Abordando uma outra Amazônia — a do tráfico humano, milícia, corrupção policial e assassinatos em série — Edyr fez sucesso na França muito antes de ficar conhecido no Brasil, ganhando diversas traduções no idioma do comissário Maigret:
— Venho da maior floresta tropical do planeta, mas que abriga uma floresta de concreto fincada nela. Existe uma perplexidade entre esses dois mundos quando se encaram. Da minha casa, vejo o rio e o outro lado, a cidade. Quando aquele homem que pega o barquinho e traz o açaí que colheu pisa nesse concreto, acontece uma coisa. É sobre isso que eu escrevo.
Nos últimos anos, Edyr viajou pela França falando para plateias curiosíssimas e cheias de perguntas sobre a vida em uma metrópole tropical.
— Os franceses acham que quebrei o cristal da Amazônia-Éden, que trouxe uma verdade do tempo — conta. — Explico que daqui da floresta assisto aos campeonatos francês e inglês. O mundo chega até aqui, Belém sempre teve essa abertura.
No início do século XX, no Ciclo da Borracha, havia 45 consulados na cidade. O comércio com França e Inglaterra era intenso. As famílias mandavam os filhos estudarem na Europa e eles voltavam transformados pela influência da cultura do Velho Mundo.
Essa história de intercâmbio, que não difere das de outras cidades ricas do Brasil no período, permanece pouco explorada. É o que avalia o escritor belenense Fábio Horácio-Castro, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2021 pelo romance “O réptil melancólico” (Record). O livro imagina um Pará alternativo, que teria permanecido colônia portuguesa até os anos 1960.
— Belém é uma capital esquecida do Brasil — diz Horácio-Castro, que leciona no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará. — Acho que é preciso perceber seu papel histórico estratégico, para o bem e para o mal, como capital do Grão-Pará e Maranhão, como centro de negociações geopolíticas que moldaram as fronteiras internacionais do que hoje chamamos de Amazônia.
No livro de contos “Apontamentos sobre a Cidade Imaginária de Belém” (Editora Patuá, 2024), Horácio-Castro dialoga com os imaginários urbanos, históricos, geográficos e culturais de uma cidade ainda presa a estereótipos. O autor lembra que a região metropolitana tem cerca de três milhões de pessoas, numa geografia híbrida: são 72 ilhas e mais de cem comunidades ancestrais, como as ribeirinhas e quilombolas.
— Belém tem uma vocação histórica para ser ao mesmo tempo colônia e metrópole — explica. — Cheia de arquivos e mistérios, marcada por um dos processos coloniais mais bárbaros do Ocidente, mas também um lugar de mistura, encontro, mercado e resistência. Isso vai além do pitoresco e é difícil de simplificar.
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Vencedora do Prêmio Jabuti na categoria Contos pelo livro “Flor de Gume” (Moinhos), Monique Malcher (Companhia das Letras) amplia o mapa literário amazônico. São 20 horas de carro entre a Santarém natal e a capital Belém, onde passou boa parte de sua carreira de repórter policial e cultural. Seu novo romance, “Degola”, se passa na Zona Franca de Manaus e acompanha uma família em busca de moradia e dignidade.
— Muitas violências apresentadas em “Degola” soam para alguns como algo novo ou até absurdo — diz Malcher, também artista plástica e doutora com enfoque em antropologia e estudos de gênero. — Assim começam a se dar conta dos desdobramentos que a exclusão e a visão do exótico podem ter para o território amazônico. Não somos Brasil profundo ou qualquer ramificação dessas. Somos Brasil. E tudo que se faz em um canto do Brasil reverbera em todos os outros.
O livro anterior de Malcher, “Flor de Gume”, retrata três gerações de mulheres amazônicas, numa narrativa que vai do Pará até Florianópolis. Um dos contos revisita uma chacina ocorrida em vários bairros de Belém em 2014, deixando dez mortos.
— A literatura do Norte é de encantarias, mas também de resistência política — diz a autora, radicada em São Paulo. — É um território em que você aprende que tudo que é nosso está ameaçado por interesses ocultos ou explícitos de instituições ou de pessoas ligadas à exploração das riquezas naturais. Mesmo nas ficções científicas, fantasias ou literatura infantil, sempre você encontra um traço dessa revolta contra a exclusão econômica, social.
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Outro vencedor do Prêmio Sesc, o escritor Airton Souza mergulha no universo do garimpo em “Outono de carne estranha” (Record). Situado na Serra Pelada dos anos 1980, o livro explora o romance proibido entre dois garimpeiros.
— A Serra Pelada, como a região do Carajás a que pertence, representa o projeto neocolonial no interior do país — diz o autor. — Nossos dilemas, não apenas geográficos, mas simbólicos, geracionais, estão em nossa literatura, tentando de alguma forma aproximar pelo menos duas visões sobre a Amazônia. A primeira, vista de fora. A segunda, mais íntima, a partir de dentro.
O olhar de fora, segundo ele, carrega um modelo enviesado, que não representaria a complexidade da região:
— O viés propagado por esse olhar era manter no imaginário nacional a Amazônia como o espaço a ser ocupado, o verde.

