São 3h de uma madrugada abafada, e uma moça de 30 anos contraria o namorado ao avisar que só arredará o pé do Point Show, casa noturna em Belém (PA), após assistir à explosão de papel picado na festa da aparelhagem Tudão Crocodilo. Até que amanheça, uma pequena turba agitará freneticamente os corpos em meio à mistura de música e pirotecnia orquestrada por um DJ no alto de uma estrutura metálica em formato de crocodilo.
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Sinestesia é um conceito de fácil entendimento nos bailes que há pelo menos sete décadas fazem pulsar as bases da indústria musical paraense. Ali, o som é feito para ver, sentir e também ouvir, em frequências “capazes de reorganizar sistemas moleculares”, como atesta a primeira faixa de “Rock doido”, álbum recém-lançado por Gaby Amarantos em celebração a este ecossistema cultural sem qualquer comparativo no mundo.
A rigor, as aparelhagens — como são chamados os potentes sistemas de som made in Pará — surgiram de maneira despretensiosa, entre as décadas de 1940 e 1950, em comunidades ribeirinhas. O negócio, à época, era mais ou menos simples: aos fins de semana, grupos de amigos e familiares armavam equipamentos sonoros, inicialmente conectados a toca-discos, para dançar, juntinhos, clássicos do brega. Embora popular, o gênero era desprezado pelas rádios locais, que só reproduziam standards estrangeiros na programação.
— Algumas estações FM mantiveram, por muito tempo, decretos proibindo o brega. Não à toa, as aparelhagens estão diretamente associadas a este gênero, que sempre foi o som da periferia — diz o DJ e produtor Waldo Squash, líder do grupo Gang do Eletro. — As festas cresceram justamente fazendo a divulgação de cantores do brega.
Do mesmo modo que a produção musical se transmutou, a partir dos anos 2000, com a popularização de ferramentas digitais — algo que deu tração a vertentes do brega fincadas em bases eletrônicas, entre os quais o tecnobrega, o tecnomelody, o rock doido e o eletromelody —, as aparelhagens também passaram a viver em permanente renovação na esteira da constante modernização das tecnologias.
Hoje, para montar do zero uma aparelhagem nos trinques, é preciso desembolsar mais de R$ 3 milhões, como apontam produtores paraenses ouvidos pelo GLOBO. Além das caixas turbinadas para ecoar diferentes frequências, a maquinaria inclui telões de LED, holofotes, estruturas de alumínio e geradores de energia capazes de suportar voltagens que não cabem nas tomadas. E mais. Ainda há as carretas onde tudo isso fica guardado.
— Antigamente, as aparelhagens eram feitas com 12 metros de compensados e equipamentos inclinados uns nos outros. Hoje em dia, é um comando com uma estrutura gigantesca, algo parecido com o que se vê em grandes shows — aponta o DJ Elison, que trabalha nessa seara desde a infância, ao lado dos pais e dos irmãos, criadores da conhecida aparelhagem Super Pop.
Celebridades locais, os DJs são verdadeiros performers. Antes chamados de “controlistas”, eles passaram a também assumir, do fim dos anos 1980 para cá, a função de locutores. No meio das festas, tomam o microfone para enfileirar bordões próprios e direcionar mensagens — e até mesmo músicas — para grupos de fãs, as equipes. O resultado, claro, é a euforia imediata.
— O trabalho do DJ, nas aparelhagens, envolve a receptividade com o público. Nas festas, os brincantes adoram ouvir seus nomes sendo citados para todo mundo — comenta o DJ Dinho, da aparelhagem Tupinambá. — Muito além de apertar botões, como se dizia dos controlistas, os DJs deixaram de ser simplesmente DJs. Nas aparelhagens, são comunicadores, locutores e apresentadores, além de sonoplastas.
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A comunicação direta com o povo faz dessas festas o principal mecanismo de difusão de lançamentos musicais no Pará. Mesmo após as rádios locais terem incorporado o brega em suas programações, as aparelhagens seguem como propulsor fundamental para a carreira de artistas no estado.
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Há não muito tempo, a depender da tecnologia de cada época, os cantores entregavam aos DJs vinis, fitas cassetes, CDs, disquetes, pendrives e arquivos digitais alocados no extinto site 4 Shared (“quatro xaréde”, no linguajar amazônico) com produções próprias para serem tocadas nas festas. Tudo sempre funcionou na base da camaradagem, por meio “do bom e velho entendimento de que uma mão lava a outra”, como resume um profissional da área. A realidade segue exatamente igual — a única diferença é que as músicas, atualmente, são enviadas com cliques no WhatsApp.
— Se não fossem as aparelhagens, eu não seria hoje a Viviane Batidão — comenta a cantora, tida como a maior diva do tecnomelody.
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Ela calcula, aliás, que ao menos mil músicas com a sua voz estejam perdidas em pendrives distribuídos a DJs ao longo dos últimos anos.
— Surgi com a força dessas festas, e as aparelhagens ainda são a maior ferramenta de distribuição de minha produção, além de meu principal termômetro. Ainda vou, de DJ em DJ, mandando minhas canções — reforça Viviane. — Eles são nossos braços direitos, e é assim que a gente caminha junto rumo ao sucesso.
A cantora define as aparelhagens como “montanhas-russas do brega”, já que todas — entre as quais Rubi, Fênix do Marajó, Badalasom, Cyclone e Meteoro, várias delas retratadas numa marcante série fotográfica de Vincent Rosenblatt — dão vazão aos vários estilos do gênero (“Do rock doido ao brega raiz para dançar coladinho”, como ela diz).
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Figura que também despontou nas festas de aparelhagem, Gaby Amarantos crê que este fenômeno cultural do Pará vive agora um “momento de virada”, com um gradual alcance nacional. A intenção de “Rock doido”, disco com o qual ela sairá, em breve, em turnê pelo país, é emular um set completo de uma… aparelhagem.
— Quando preparei a sonoridade do álbum, quis trazer ao máximo a experiência de uma festa de aparelhagem para as pessoas sentirem esta vibração cheia de muita pirotecnia, fumaça, euforia, gozo e alegria — anima-se. — Somos um Brasil tecnológico no meio da Amazônia.

