Alguns (raros) episódios de “Black mirror” desviam da ideia de um futuro pessimista. Foi assim com “San Junipero” (de 2016). Naquela trama, a tecnologia abria possibilidades românticas para duas mulheres — e vou evitar spoilers, porque vale a pena assistir. Agora, a sétima temporada da série acaba de chegar à Netflix. São seis capítulos, e já tenho meu preferido: o quinto, intitulado “Eulogy”. Assim como “San Junipero”, ele trata de tecnologia, mas se afasta de seus efeitos nefastos. É triste, mas não assustador. Trata-se de uma aventura humana, uma reflexão sobre luto, memória, afeto e pacificação com fantasmas do passado. De quebra, Paul Giamatti — ator genial — vive o protagonista. Sua atuação, comovente e contida, contribui muito para o impacto emocional do episódio. Não perca.
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Acompanhamos Phillip desde o momento em que ele recebe um telefonema de uma empresa chamada Eulogy. Do outro lado da linha, uma voz lhe informa sobre a morte de uma antiga namorada, Carol, e o convida para participar da cerimônia fúnebre. Ele hesita, mas acaba aceitando. Recebe então um pacote contendo um pequeno gadget que permite reintroduzir o usuário na cena estática de uma imagem antiga, que ganha a grandeza de 3D. Para isso, basta colar o aparelho na têmpora e usar fotos velhas. Essa combinação de gestos impulsiona a pessoa para dentro daquele registro — como uma madeleine de Proust capaz de reconstituir todo um painel do momento vivido. Uma guia (Patsy Ferran) narra o passo a passo e orienta a jornada.
É uma viagem ao passado, mas com o olhar do presente. O relacionamento com a ex-namorada foi complicado e mal resolvido. As fotos não revelam o rosto de Carol, e evito aqui os detalhes, porque o enredo é cheio de surpresas.
Phillip não tem como mudar o que aconteceu, mas, de certa forma, ganha uma segunda chance. Pode explorar o que viveu mas não elaborou — como se estivesse num divã. É uma jornada terapêutica. O roteiro equilibra com refinamento o que a câmera mostra (ou oculta), e conduz o espectador sem cair em didatismos.
“Eulogy” tem mais inspiração em Freud do que em Asimov (Isaac Asimov, o escritor russo de clássicos da ficção científica).
Apesar de um pouco diferente das aventuras que consagraram “Black mirror”, essa história deve arrebatar o público fã da série. E com uma vantagem: ela não se distancia tanto das fantasias mais cotidianas do espectador. A premissa toca em algo universal — a vontade de dizer o que ficou por dizer, de entender melhor quem fomos e por que agimos como agimos. É uma pequena fábula.
PS: O criador da produção, Charlie Brooker, disse em entrevista que o capítulo foi inspirado no documentário “Get back”, sobre os Beatles, que usou Inteligência Artificial para aprimorar imagens de arquivo. “Eulogy”, por outros meios, brinca com a ideia de trazer de volta o passado.