“Estou aqui em meu nome, com meus avós, meus pais, com um milhão e meio de pessoas que não tiveram a oportunidade de viver, de sonhar, de crescer, de amar, de dizer ‘te amo’ a alguém. Que não tiveram nada além de fome e miséria”. No caminho que levava ao memorial erguido nos anos 1960 às vítimas do genocídio armênio, em Erevan, o uruguaio Pedro Kahvedjian levava, além de flores e uma bandeira de seu país, a memória de seus antepassados.
— Peço desculpas por ficar tão emocionado, mas eu realmente amo a Armênia de todo o meu coração. Minha avó foi escravizada, o padrasto da minha esposa foi escravizado — afirmou Kahvedjian, com os olhos marejados, ao GLOBO no dia 24 de abril, data reconhecida como o dia em que teve início o genocídio.
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Ao seu lado, outras dezenas de milhares de pessoas, cada qual com sua história pessoal de luto transmitida por gerações, marcavam os 110 anos de um capítulo da trajetória dos armênios que não apenas serve como uma janela para o passado, mas também como uma questão primordial de suas existências no presente e futuro.
De acordo com documentos oficiais, relatos históricos e memórias transmitidas de pais para filhos, o genocídio foi uma campanha orquestrada pelo então Império Turco Otomano contra a populosa comunidade armênia que vivia em seu território — diplomatas e historiadores estimam que seriam cerca de 2,5 milhões de pessoas — entre 1915 e 1923.
O processo ocorreu em meio ao desmantelamento do império e à Primeira Guerra Mundial, quando as lideranças turcas estavam ao lado da Alemanha, e evoluiu rapidamente da prisão e execução de intelectuais e lideranças da comunidade para massacres, assassinatos, sequestros e para as “marchas da morte”, quando as pessoas eram obrigadas a deixarem suas casas rumo ao deserto sírio, um caminho quase sempre sem volta.
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Segundo estimativas, cerca de 1,5 milhão de pessoas, de todas as idades, perderam a vida nestes oito anos. Os que sobreviveram rumaram para outros países, ampliando a já considerável diáspora armênia, ou foram “incorporados” à força à sociedade turca, através do apagamento de suas raízes, especialmente em orfanatos, apontam historiadores.
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Perto do memorial onde uma coluna de flores era depositada perto da chama eterna no dia 24 de abril, muitas das histórias que os visitantes levavam consigo estavam expostas e catalogadas no museu dedicado a contar a história do genocídio.
Documentos oficiais, inclusive emitidos pelos próprios otomanos, servem como testemunho de muitas das mortes. As imagens de pessoas cuja humanidade parecia desaparecer aos poucos ilustram as paredes, assim como uma frase atribuída ao ditador nazista, Adolf Hitler — para muitos estudiosos, o genocídio armênio está diretamente ligado ao Holocausto na Segunda Guerra Mundial.
— Quem, afinal das contas, fala hoje da aniquilação dos armênios? — teria dito Hitler, segundo registros históricos, em um discurso em 1939.
Em entrevista ao GLOBO, Edita Gzoyan, diretora do Museu-Instituto do Genocídio Armênio, afirma que todos os documentos, fotos e vídeos, muitos fornecidos pela diáspora, são meticulosamente estudados antes de serem aceitos. Algumas famílias cedem diários, identidades e outros objetos de seus antepassados, ajudando a contar a história de um massacre que moldou e ainda molda suas próprias identidades.
— O Museu do Genocídio é a única instituição do tipo no mundo, e é na Armênia. E é um lugar de todos os armênios, como os que estão visitando o país, especialmente no mês de abril — afirmou Gzoyan. — Mas como os armênios estão em outros países, isso nos ajuda a contar nossa história para o mundo. Por vezes em pequenos museus, na preservação das cruzes de pedra (“khachkar”) que são típicas, são outras formas de contar a história do genocídio armênio.
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Se na Armênia o genocídio é uma certeza que faz parte da identidade da nação, o mesmo não se pode dizer fora de suas fronteiras. Hoje, cerca de 40 países reconhecem a matança iniciada em 1915 — no Brasil, o Senado reconhece o genocídio, ao lado de alguns governos estaduais e municipais, mas o Estado brasileiro não o fez até hoje. No dia 24 de abril, um documento assinado por lideranças e instituições da comunidade armênia no Brasil pediu ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva o reconhecimento o quanto antes.
Mas uma decisão como essa vai além de uma simples questão histórica.
A Turquia, Estado que sucedeu o Império Turco Otomano, rejeita as alegações de que houve um genocídio, alegando que o número de mortos foi inflado pelos historiadores e que muitos morreram em meio à Primeira Guerra Mundial. Ancara ainda acusa a comunidade armênia de ter realizado massacres contra cidadãos turcos: em 1999, um memorial foi erguido na cidade de Igdir para “relembrar os massacres e a perseguição cometidos pelos armênios” na região.
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Nos últimos anos, jornalistas e ativistas turcos que mencionaram o genocídio foram presos, agredidos e mortos, como o jornalista Hrant Dink, assassinado por um nacionalista em Istambul em 2007. Países que reconhecem o genocídio geralmente sofrem retaliações, sejam elas diplomáticas, como a retirada de um embaixador — algo ocorrido com o Vaticano em 2015 e com os EUA em 2021 —, ou econômicas.
— E talvez não haja muito interesse por parte dos Estados em um confronto com a Turquia para reconhecer as injustiças que ocorreram com outro povo. Mas não é apenas sobre armênios e turcos, mas sim sobre a humanidade como um todo — aponta Gzoyan. — Reconhecer crimes dessa magnitude é importante para a humanidade.
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Na véspera da silenciosa celebração no memorial, milhares de pessoas se reuniram na Praça da República, coração de Yerevan, para uma tradicional marcha (barulhenta) com tochas e velas em memória das vítimas do genocídio, e também contra a anexação da região de Nagorno-Karabakh, historicamente ligada aos armênios, pelo Azerbaijão.
Ao lado das chamas que iluminavam a penumbra, cartazes traziam os nomes de cidades da região, e parentes de prisioneiros feitos durante os conflitos iniciados em 2020 carregavam suas fotos durante o trajeto, ao som de discursos criticando o premier, Nikol Pashinyan, por ter aceitado um plano de paz com Baku, que ainda não tem data para ser assinado.
Alguns dos manifestantes que conversaram com o GLOBO externaram um sentimento ouvido muitas vezes ao longo dos dez dias em que a reportagem permaneceu na Armênia: o de abandono.
A começar pela Rússia, cujas forças de paz no território foram acusadas de fazer vistas grossas para o avanço das tropas azeris em 2023, algo que começa a minar a própria imagem de Moscou junto a parte da população armênia. Os russos também vêm estreitando seus laços com Baku, embora de forma mais pragmática do que amistosa, o que acende alertas em Erevan.
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Além da recusa de grande parte do planeta em reconhecer o genocídio de 110 anos atrás, muitos se ressentem da falta de apoio diante do que veem como expulsão da população armênia de Nagorno-Karabakh, em setembro de 2023. O governo azeri afirma que não obrigou ninguém a sair de casa, mas a organização Freedom House, que monitora o estado das democracias pelo mundo, comparou as ações do Azerbaijão a uma política de “limpeza étnica”, em relatório publicado no ano passado.
— Há fortes ecos do que aconteceu há 100 anos acontecendo novamente hoje. E um grande sentimento é que não podemos contar com ninguém além de nós mesmos. Essa é uma mensagem muito importante que sentimos antes, e a sentimos novamente hoje — disse ao GLOBO Armen Ovanessoff, analista político armênio.
Mas para Ovanessoff, o risco existencial renovado — ele cita discursos de Baku sobre o “Azerbaijão Ocidental”, que compreenderia o território atual da Armênia, e uma proposta de um corredor no sul do país que cortaria a ligação de Erevan com o Irã — pode ser encarado como uma maneira de reafirmar a identidade nacional em um povo cuja história foi permeada por incontáveis crises.
— Mas quando falamos em crise existencial, do que estamos falando, seria em termos da existência da nossa terra ou da nossa existência como povo? Eles podem tomar nossas terras, e muitos já tomaram nossas terras antes, mas não podem destruir o nosso povo — conclui.
*O jornalista viajou à Armênia a convite da União Geral Armênia de Beneficiência (UGAB Brasil)