O Judiciário brasileiro tem uma contradição a resolver às vésperas do julgamento do caso Marielle Franco no Supremo Tribunal Federal (STF): o ex-policial militar Ronnie Lessa, assassino confesso da vereadora e responsável por indicar a família Brazão como mandante do crime, acaba de sofrer uma condenação por homicídio no bairro da Gardênia Azul, na Zona Oeste do Rio, que desmente sua delação premiada homologada em março do ano passado.
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Na última quinta-feira, o 3º Tribunal do Júri responsabilizou Lessa pelo assassinato, em 2014, do ex-policial André Henrique da Silva Souza, o Zóio, e de sua mulher, Juliana Sales de Oliveira. Até aí, Lessa já havia assumido a execução em seu acordo de delação por “desavenças pessoais”. Segundo ele, Zóio roubara seu dinheiro das máquinas caça-níqueis que operava em Jacarepaguá. O Ministério Público do Rio e os sete jurados do caso, contudo, discordaram da versão de crime sem mandante.
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O ex-sargento do Corpo de Bombeiros e ex-vereador Cristiano Girão, que comandou durante anos o grupo paramilitar da Gardênia Azul, segundo a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio, de 2008, também foi responsabilizado pela morte. A acusação afirma que Girão encomendou os serviços de Lessa por ter se irritado com movimentos de Zóio, um miliciano de Campo Grande que tentava virar o novo chefão da região e lucrar com o aluguel de imóveis.
No anexo V da sua delação, Lessa afirmou peremptoriamente que nunca esteve com Girão, relato que manteve em outros depoimentos recentes no STF.
— Eu particularmente não conheço, não quero conhecer, não conheço seu tom de voz, não conheço sua altura, o que eu tenho dele é simplesmente informações (sic) de que ele é um cara arrogante — respondeu ao delegado Guilhermo Catramby na sede da PF do Rio.
No entanto a investigação que condenou Lessa e Girão ouviu testemunhas que contradizem o ex-PM. Mais especificamente, um ex-assessor parlamentar do ex-vereador e uma testemunha ocular do assassinato de Zóio deram detalhes da relação entre os dois no inquérito 901-00688/2014, conduzido pela Delegacia de Homicídios (DH).
— Restam claros indícios de que há pelo menos 7 anos Cristiano Girão utiliza os serviços de Lessa para executar seus inimigos — escreveu o delegado Moysés Santana Gomes no relatório final da investigação.
Lessa costumava se sentir à vontade em Gardênia Azul, onde, qualquer político fluminense sabe, Girão sempre deu as cartas. Tanto para cometer homicídios de fuzil sem cobrir o rosto, como o de Zóio, como para fazer negócios. Em depoimento na DH, o ex-presidente da Associação de Moradores de Rio das Pedras Jorge Alberto Moreth, mais conhecido como Beto Bomba, disse que Lessa e Girão foram sócios em cooperativa de Kombi e num campo de futebol.
Relator do caso Marielle no STF, o ministro Alexandre de Moraes mostrou-se disposto a saber mais sobre as relações entre Lessa e Girão. No primeiro trimestre, pediu para a Polícia Civil do Rio enviar para Brasília os inquéritos 1246 e 266, que investigaram outros possíveis mandantes para o crime. Daniel Rosa, um dos delegados ouvidos em audiências no STF nos últimos meses, afirmou ter visto mais indícios contra Girão que contra os irmãos Brazão enquanto apurou o caso. Foi ele que investigou as inusitadas dez horas que o ex-bombeiro ficou numa churrascaria na Barra da Tijuca, entre a tarde e a noite do dia da morte de Marielle. A tese Girão mandante, descartada pela PF, se baseia na hipótese de vingança contra o ex-deputado federal e hoje presidente da Embratur, Marcelo Freixo, que abrigou Marielle em seu gabinete durante a CPI das Milícias, responsável por indiciar Girão. Em depoimento ao STF, Rosa destacou uma busca que Lessa fez no Google do nome da filha de Freixo, 15 dias antes do homicídio:
— A gente acreditou que a linha de investigação foi para matar o Marcelo Freixo.
Há duas semanas, a Procuradoria-Geral da República (PGR) entregou suas alegações finais do caso Marielle. Os investigadores descartam qualquer envolvimento de Girão e pedem a condenação em regime fechado dos irmãos Brazão e do delegado Rivaldo Barbosa. As 206 páginas da peça se assemelham às 479 folhas do relatório final da PF e às 34 da denúncia do Ministério Público Federal que analisei em artigo publicado neste espaço em 30 de maio de 2024 (“Marielle e a verdade que incomoda”).
Passado quase um ano, o inquérito que apura quem mandou matar Marielle tem como principal prova a delação premiada de Lessa e falha muito em elementos para corroborar os relatos. Com o julgamento da trama golpista, o capítulo final do caso Marielle está previsto para acontecer ainda neste ano no STF e promete parar o Brasil.
*Thiago Prado é editor de Política e Brasil do GLOBO

