Cinco anos depois, ainda é desafiador entender o impacto que a pandemia teve no enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes. O isolamento social e o fechamento de escolas transformaram a forma como as violências são percebidas e denunciadas. Se, por um lado, a crise sanitária obrigou o mundo a repensar prioridades e políticas de proteção social, por outro, silenciou milhares de crianças ao privá-las de um importante espaço de acolhimento e denúncia.
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O impacto desse silenciamento se reflete nos números. Durante a pandemia, os registros de violência sexual contra crianças caíram, mas não porque os abusos tenham diminuído — pelo contrário, especialistas apontam que a subnotificação se tornou ainda mais grave. O fechamento das instituições de ensino e o isolamento em casa impediram que sinais de abuso fossem notados e relatados.
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Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação, do Ministério da Saúde, ilustram o problema. Em 2019, antes da crise sanitária, foram registrados 34.212 casos de violência sexual contra brasileiros de 0 a 19 anos. Em 2020, primeiro ano da pandemia, esse número caiu 14,4%, com 29.269 notificações. A redução, em vez de refletir avanço, evidencia o impacto do distanciamento social na identificação de situações de violência.
Informações de 2021 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam que, em casos de estupro com vítimas entre 0 e 19 anos, 83% dos agressores foram familiares ou conhecidos, e mais de 60% desses casos aconteceram na residência. Sem contato com professores, cuidadores e profissionais da saúde, as crianças perderam espaços estratégicos para identificação ou relato da violência.
Os números que se seguiram confirmam essa realidade. Em 2023, o Disque 100 registrou 9,6 mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes, considerando somente os dados até abril, próximo ao fim do estado de emergência da pandemia. Em comparação com o mesmo período em 2022, houve aumento de 49% nos registros de violência sexual. Em 2024, considerando todos os tipos de violência, foram 289,4 mil denúncias (média de 33 denúncias a cada hora), aumento de 26,6% em relação ao total do ano anterior.
A pandemia também intensificou o uso da internet cada vez mais precoce por crianças e adolescentes. Como grande parte desse acesso é feita de forma não supervisionada, meninos e meninas ficam expostos a riscos no ambiente on-line e, muitas vezes, longe de qualquer outra rede de proteção. Entre 2019 e 2022, a aliança global WeProtect detectou aumento de 87% nos casos relatados de violência sexual e psíquica contra crianças e adolescentes nas redes. Entre os casos, estão assédio, criação de imagens sexualizadas com uso de inteligência artificial e extorsão. Apenas em 2022, foram cerca de 32 milhões de episódios.
A violência sexual contra crianças é um problema global, e sua real dimensão ainda é desconhecida. Uma análise de 165 estudos, publicado pelo periódico Jama Pediatrics, abrangendo quase 1 milhão de crianças em 80 países, revelou que entre 8,5% e 15,1% delas já sofreram assédio sexual ao longo da vida. As meninas são as principais vítimas.
É preciso então preparar profissionais, em especial da educação e da saúde, para reconhecer sinais de violência e encaminhar de forma eficaz às redes de proteção, a fim de garantir celeridade no atendimento, proteção integral e um espaço seguro para crianças e adolescentes. Cinco anos depois de um momento crítico, precisamos recolher os aprendizados e agir: qualificar a atuação dos profissionais e instituições; aprimorar a coleta de dados e estudos sobre o tema; fortalecer canais de denúncia e redes de proteção. A ampliação dos esforços nesse combate é urgente.
*Bárbara Pimpão Ferreira é gerente do Centro Marista de Defesa da Infância

