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Em entrevista ao GLOBO, na semana em que foi homenageada no Prêmio Faz Diferença, Maria Ressa defendeu a regulamentação das redes sociais, expressou sua preocupação com a expansão do uso da inteligência artificial e reiterou o papel do jornalismo como um pilar de nossa sociedade, mesmo em meio aos ataques vindos de todos os lados.
Em seu livro “Como enfrentar um ditador”, você fez uma comparação a uma antiga forma de execução chinesa, a “morte por mil cortes”, e a ação de autocratas que fazem ataques pontuais à democracia, que só são percebidos quando todo o sistema está corroído. Neste cenário, as redes sociais são uma ferramenta a mais para os “cortes” antidemocráticos?
A forma como as redes sociais são moldadas maximizam o lucro, e eles o mantêm rolando a tela com mentiras. Tudo ficou ainda pior depois que Elon Musk comprou o Twitter e o transformou no X. As mentiras hoje se espalham seis vezes mais rápido do que em 2018, e são impulsionadas por medo, ódio e raiva. Elas hackeiam nossa biologia. E essas emoções mudam a forma como vemos o mundo, como agimos e como votamos. As redes sociais tiveram um efeito imediato no mundo na década passada. Em março, o instituto V-Dem, da Suécia, disse que 72% do mundo têm regimes autoritários, um patamar similar ao de 1978. E isso me preocupa: as redes sociais tiraram nossa capacidade de avaliação sem que tenhamos percebido? Afinal, nós estamos elegendo esses líderes não liberais, o mundo está mudado. Então quando citei a “morte por mil cortes” era o que sentia nas Filipinas quando [Rodrigo] Duterte assumiu, ele começou a remover pequenas coisas, como barrar a imprensa no palácio presidencial, dizer que ia banir os jornalistas de outros eventos. Eram pequenos cortes, e você nem liga, mas quando percebe, seu corpo já está sangrando tanto que você está morrendo. Foi o que aconteceu com as democracias ao redor do mundo.
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Hoje o grande assunto no meio de tecnologia é a IA, mas rapidamente percebemos como elas podem ser usadas de maneira nociva. Estamos preparados para lidar com ela?
O primeiro nível de contato entre a IA e a humanidade é nas redes sociais. Elas roubam nossos dados, fazem um clone nosso. O Facebook diz que estão usando esse conhecimento para criar um modelo seu, mas podemos trocar essa palavra por “clone”. Relatórios de consumidores apontaram, há cerca de um ano e meio, que as empresas estavam usando cerca de 2,3 mil diferentes conjuntos de big data. Se você é americano, sua privacidade de dados é um mito. Quando a inteligência artificial chega, ela pega nossos clones e se torna o banco de dados principal que é usado para micro segmentação, que é um antigo modelo de publicidade. Ela vende seu ponto mais fraco para uma empresa ou país. Mas o que percebemos é que países e pessoas que buscam o poder usam isso para manipular as pessoas nas plataformas. Nos EUA, por exemplo, nas eleições de 2016, a Comissão de Inteligência do Senado revelou que 126 milhões de americanos foram expostos à propaganda russa. Mulheres, também em 2016, sofreram dez vezes mais ataques do que homens. Isso são as redes sociais.
Uma faceta nociva da IA, os deep fakes, está senda usada para propagar desinformação e minar reputações. Isso é mais um argumento em prol de uma regulamentação mais estrita para o setor de tecnologia?
Com esse tipo de IA, eu tenho um “deep fake” meu vendendo uma criptomoeda. Jamais disse aquilo, mas soa como se fosse eu. Em outro caso, há um vídeo e um áudio meu no qual digo às pessoas com diabetes para que joguem fora a insulina. Jamais disse isso, mas algumas pessoas podem acreditar. Nós não estamos preparados para IA, e por isso deveria haver leis, uma vez que, com a IA generativa, as pessoas não sabem mais o que é real ou não. Por exemplo, um deep fake meu dizendo para as pessoas jogarem fora sua insulina. É uma questão de segurança, não de liberdade de expressão. No mundo real, se você é jornalista e publica uma mentira, enfrentamos questões legais. Por que as big techs não? Por que permitimos que o mundo seja virado de cabeça para baixo para que elas tenham mais lucros?
Dmitry Muratov (jornalista russo e vencedor do Nobel da Paz em 2021) e eu lançamos, em 2021, um plano de ação de 10 pontos, assinado por outros 300 vencedores do Nobel e grupos da sociedade civil, que foca em três pontos. O primeiro é o fim da vigilância por lucro. Os seres humanos precisam de privacidade de informação, e se você quer meus dados, precisa me pagar. A Declaração Universal dos Direitos Humanos tem lugar no mundo virtual. O segundo é o fim do viés codificado. Se você é uma mulher ou pessoa LGBT+, negro ou membro de uma minoria étnica, você será marginalizado online. Esse é o código que está em nossos telefones. E, finalmente, o jornalismo como antídoto para a tirania. O Comitê Norueguês do Nobel disse que, sem o jornalismo, sem liberdade de expressão, a democracia morre. O jornalismo precisa não apenas sobreviver, mas sim desafiar o poder. Nosso dever sempre foi dizer a verdade ao poder.
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Na carta em que anunciou tarifas de 50% ao Brasil, o presidente dos EUA, Donald Trump, citou medidas tomadas contra as big techs aqui no Brasil, em uma demonstração de que o chefe da maior economia do mundo está do lado delas. Foi um sinal, esse mais enfático, de que a batalha pela regulamentação será difícil?
O maior problema nos EUA é que discursos violentos foram postos no mesmo patamar da liberdade de expressão, algo que o lobby das big techs pressionou para que fosse assim. Mas não é uma questão de liberdade de expressão, mas sim de segurança. Quando você cria um software hoje, está criando um mundo. Estamos neste momento em um prédio que segue leis para seguir operando. Há uma lei. Uma torradeira nos EUA tem mais regulamentações de segurança do que as big techs têm em seus softwares. A primeira coisa que penso é nos perigos às crianças. O ex-cirurgião-geral dos EUA, que deixou o cargo após a posse de Trump. divulgou dois relatórios, sendo que um deles fala da “epidemia da solidão”, como a tecnologia está nos isolando. Há mais casos de depressão, de jovens tirando as próprias vidas, de distúrbios alimentares. O mundo se move com base em nossas conexões, nossas conexões sociais, e empresas como o Facebook roubaram isso. Se olharmos para o que nos é ofertado nos telefones pelas empresas de tecnologia, veremos que tudo nos encoraja a sermos nossas piores versões. Se você mentir, conseguirá mais alcance e incitará medo, ódio e raiva. Não somos assim. A bondade das pessoas está lá, mas é mais difícil lidar com pessoas mais jovens que ainda estão tentando formar seus valores. Por isso, a segurança em primeiro lugar. Engenheiros civis têm códigos de obras e seguem padrões éticos — os engenheiros de software deveriam estar sujeitos aos mesmos padrões.
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Neste contexto, a decisão da Justiça da Romênia de anular a eleição presidencial do ano passado, após alegações de manipulação através das redes sociais, foi um passo positivo?
Absolutamente. Pensemos nas Filipinas, em maio de 2016 Rodrigo Duterte foi eleito presidente, e ele foi eleito pelas redes sociais, o primeiro. Um mês depois houve o Brexit, e também há dados que mostram a manipulação do voto. Ainda em 2016, a primeira vitória de Trump, sobre a qual o Senado dos EUA mostrou, em 2018, os indícios de informações contra americanos. Mas nenhum país teve a coragem de cancelar uma eleição, citando interferência eleitoral, antes da Romênia em dezembro de 2024. Se não tivessem feito isso, teriam eleito um homem sem partido, que fez campanha no TikTok e com amplas evidências de interferência do Kremlin. Essa foi fácil de notar, mas outras, como a morte por mil cortes de nossa independência, de nossa capacidade de escolher, são mais difíceis. Se estamos sendo manipulados, a democracia funciona. Ou essa é a razão pela qual o mundo está caminhando em direção à autocracia e ao fascismo.
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Ainda sobre Trump, como você avalia o uso em excesso de ordens executivas, de certa forma quebrando a normalidade democrática? Soa similar ao que você já viu nas Filipinas?
Os pesos e contrapesos da democracia americana foram jogados fora. E isso é um problema porque os EUA eram o farol da democracia. O que acontece por lá é familiar para os brasileiros e também para os filipinos. Digo que nossos países foram do inferno para o purgatório. Foram seis meses para Duterte abalar instituições democráticas, tomando todas as decisões através do Poder Executivo. Ferdinand Marcos, nosso primeiro ditador e que ficou no poder por 21 anos, declarou lei marcial por ordem executiva. Trump também usa ordens executivas. Por isso questionamos como a democracia americano se parecerá, se ela sobreviverá, e o que causará ao mundo. Estamos passando por isso agora. O presidente Lula respondeu a Trump de maneira forte, mas parece que estamos vivendo em um mundo invertido, similar ao que acontece nas redes sociais. Ações estão sendo tomadas com impunidade, de uma forma que jamais aconteceria na antiga ordem. Já disse algumas vezes que a nossa maior batalha hoje é provar que um sistema internacional baseado em ordens ainda existe. Mas temos [Vladimir] Putin [,presidente da Rússia] e [Benjamin ] Netanyahu [, premier de Israel], todas as guerras na África, e CEOs das big techs agindo de forma impune, pegando nossos dados, raspando tudo a ponto de termos um tráfego que não podemos bloquear. Eles não são pessoas reais. Estão apenas raspando o que nós criamos. Isso é impunidade. A impunidade precisa acabar se o Estado de Direito existir, mas aqui está o maior problema deles. Como você pode ter um Estado de Direito se não tiver fatos? Sem fatos, não temos verdades. Sem verdade, não temos confiança. Sem isso, não temos uma realidade compartilhada.
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Em relatório em maio, a ONG Repórteres Sem Fronteiras destacou o ambiente nocivo enfrentado pelo jornalismo no mundo, com problemas financeiros, perseguição judicial e criminal e a morte de dezenas de profissionais. Como enfrentar este cenário justamente no momento em que o jornalismo se mostra tão necessário?
Há quase 20 anos o número de jornalistas mortos e presos só aumenta. Ao mesmo tempo, a qualidade da democracia diminuiu. Em dezembro de 2021, eu disse em meu discurso na cerimônia do Nobel que estávamos sobre os escombros do que já foi o mundo. O mundo mudou de forma significativa, em parte por causa da globalização, em parte porque são problemas com os quais já teríamos que lidar. Mas o fósforo que fez tudo pegar fogo foi a tecnologia, que não tem regras claras. Isso me lembrou dos tempos em que o trabalho era novo, as fábricas eram novas e foram necessárias leis para proteger o trabalho das mulheres e de menores. A questão agora é se teremos tempo, e nós estamos diante de um precipício, e muito depende do que cada pessoa em uma democracia fará. Jornalistas têm um papel, e jamais enfrentamos tantos ataques como agora. Nosso modelo de negócios está ameaçado, muitos perderam seus empregos. Há instituições que seguem intactas, o que significa que precisam trabalhar para não serem ainda mais corroídas pela tecnologia. A parte interessante é que temos também a chance de criar. Precisamos fazer perguntas: onde estamos? Como o jornalismo evoluirá? Como será a tecnologia para distribuir o jornalismo? Como escapar do capitalismo vigilante? Como exigir nossos direitos, não apenas para nós, jornalistas, mas também para as pessoas que servimos?