Piracema é o fenômeno anual em que peixes de água doce nadam contra a correnteza rumo às nascentes, com o objetivo de alcançar áreas ideais para a reprodução. Do tupi, “pira” (peixe) e “cema” (subir), o movimento migratório batiza o novo espetáculo do Grupo Corpo, com estreia nacional hoje no Teatro Sérgio Cardoso, no coração do Bixiga, em São Paulo, onde fica até o próximo dia 24.
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Após passar por Belo Horizonte, Florianópolis e Porto Alegre, em cardápio que oferece de entrada o sucesso “Parabelo”, de 1997, com trilha original e premiada de Tom Zé e José Miguel Wisnik, “Piracema” estará no Rio de 18 a 21 de setembro, em aguardado retorno ao Theatro Municipal, palco que não recebe o Corpo há seis anos, desde antes da pandemia. Depois, a turnê segue para Fortaleza, Mossoró, Natal, Recife e João Pessoa.
Com coreografia de Rodrigo Pederneiras e Cassi Abranches, e trilha inédita de Clarice Assad, “Piracema”celebra os 50 anos de vida do grupo mineiro. Meio século que também será passado a limpo, ainda sem data de lançamento, em documentário dirigido por Janaína Patrocínio e livro comemorativo com fotografias de José Luiz Pederneiras das criações da companhia.
O Corpo teve sua certidão de nascimento informal emitida no exato dia de 1975 em que os seis irmãos Pederneiras — além de Rodrigo, Zé Luiz e Paulo, diretor artístico da companhia, Miriam, Pedro e Marisa — convenceram seus pais a transformar a casa em Belo Horizonte onde foram criados na primeira sede do grupo.
— E quem consegue viver de arte, sobreviver de cultura, por tanto tempo assim no Brasil, se reinventando, vivendo de dança? A imagem da piracema, do esforço dos peixes, de sua resiliência, e do resultado final, simboliza essas cinco décadas — diz Rodrigo, de 70 anos, ao GLOBO.
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De lá para cá, o milagre dos peixes protagonizado pelo grupo resultou em 43 obras criadas e encenadas, com apresentações em 261 cidades de 41 países. Além dos números impressionantes e do reconhecimento internacional, o Corpo celebra tento notável no panorama cultural nacional — a ampliação e a consolidação do público de dança no Brasil. Audiência que se enxerga no palco e se reconhece no desenho refinado de movimentos de Rodrigo, muitas vezes gestado a partir do mexer do quadril dos dançarinos. E também na cenografia e luz de Paulo, que segue a surpresa numa perseguição sem trégua, como se vê em “Piracema”.
No fundo e nas laterais do palco do novo espetáculo, cardumes são representados por 82 mil latas de sardinha, com as tampas metálicas montadas em uma rede sobre a qual são projetadas imagens de escamas.
— Claro que tem um pouco de humor nisso. A sardinha é um alimento democrático, consumido por todos, e esse é, também, o desejo do Corpo para os próximos 50 anos. O de seguir, e espero que eu não soe presunçoso, em busca da excelência, sendo uma expressão popular de dança contemporânea, do seu tempo — afirma Paulo, 74.
Continuidade e renovação que podem ser atestadas com o anúncio de Cassi Abranches, 50, como nova coreógrafa residente do Corpo, ao lado do sogro Rodrigo. Novidade que despertou em Paulo o desejo de testar mudança radical no método de trabalho da companhia.
Por sua ideia, pela primeira vez, o Corpo foi dividido em dois grupos de 11 bailarinos até o desenho final de “Piracema”. Os três grandes movimentos propostos pela trilha sonora de Clarice Assad — tribal, música clássica e eletrônica — ganharam forma separadamente por Rodrigo e Cassi. O que um fazia, a outra só viu há dois meses, e vice-versa, quando finalmente se uniram para criar o espetáculo tal qual os paulistanos verão hoje.
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Rodrigo define os meses de suor em três palavras: “Foi uma loucura.” Houve um momento, conta, em que ele e Cassi de fato acharam que a correnteza era mais forte do que o desejo de criar a “Piracema” que assinam.
— Meu trabalho se caracteriza por movimentos para dentro, contidos. Já a Cassi, cria do Corpo, mas que saiu e coreografou na Europa, abraça o alargado, o para fora, com soluções muito mais atrevidas, que dialogaram com a eletrônica de forma mais natural. Penamos até compreender que a diferença de traçado foi justamente o que gerou esta “Piracema” e a tornou diferente de tudo o que já fizemos anteriormente. E tudo o que não queremos é nos repetir— diz Rodrigo.
Foi impossível, no entanto, não olhar para trás e lembrar de outro momento do Corpo. O ano era 1992 e os Pederneiras criavam “21”, a partir de música de Marco Antônio Guimarães, interpretada pelo Uakti. A oficina do grupo mineiro ficava a uma quadra da casa do coreógrafo, e os músicos criavam novos instrumentos para executar ideias que tinham, no trabalho de pesquisa mais intenso de toda a trajetória do grupo.
Tudo parecia incrível, mas no jantar após o primeiro ensaio geral, as cabeças do Corpo, rememora Rodrigo, brindaram, macambúzias, “à nossa incompetência”.
— Sim, e aí, zero resignados, todos trabalharam como loucos nos dois dias seguintes. O resultado? Um divisor de águas, com “21” estabelecendo definitivamente a linguagem do Rodrigo. Histórias do Corpo, né?
Cinquentão, o Grupo Corpo já tem novo projeto após a estreia de “Piracema” e o revisitar de “Parabelo”, peças que se relacionam ao mergulharem no Brasil profundo. O diretor artístico Paulo Pederneiras contou ao GLOBO em primeira mão que ele, seu irmão Rodrigo e Cassi Abranches já “começaram a escutar com calma” a música de “Revolución diamantina”, criada em 2019 pela compositora mexicana Gabriela Ortiz, vencedora de três prêmios Grammy este ano, e residente da atual temporada do Carnegie Hall, em Nova York. A denúncia contra o feminicídio em seu país será coreografada por Rodrigo a pedido do maestro Gustavo Dudamel, para apresentações entre 26 de fevereiro e 1º de março do ano que vem, na derradeira temporada do venezuelano à frente da Orquestra Filarmônica de Los Angeles. Em seguida, ele se transferirá, após 17 anos, para a instituição homóloga de Nova York.
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Foram justamente os registros da Filarmônica, com Dudamel, para “Revolución diamantina” que receberam este ano os Grammys de melhor gravação orquestral, composição e compêndio clássico.
— A música de Gabriela Ortiz é fascinante, complexa, com vozes femininas. É mais uma ousadia do Dudamel, trazendo uma temática atual para o palco, nada trivial. Com ele, é sempre algo único — diz Paulo Pederneiras.
É a segunda vez que o Corpo trabalhará com Dudamel, um dos nomes mais coroados da música contemporânea. Conhecido por trabalhar a partir de temas compostos especialmente para suas apresentações, assinados por, entre muitos outros, João Bosco (“Benguelê”), Gilberto Gil (“Gil”), Lenine (“Triz”, “Breu”), Caetano Veloso (“Onqotô”, com José Miguel Wisnik) e Arnaldo Antunes (“O Corpo”), e com bases gravadas, a companhia de dança aceitou em 2020 encomenda do maestro para coreografar “Estancia”, tema do compositor argentino Alberto Ginastera (1916-1983).
Por conta da pandemia, o balé, com a orquestra e Dudamel, só foi apresentado em 2023, no Hollywood Bowl, anfiteatro com capacidade para 18 mil pessoas, lotado, com reação do público ilustrada por Rodrigo Pederneiras com a imagem de um “show de rock”.
Depois, sob a batuta do maestro Fabio Mechetti, “Estancia” teve apresentações no Brasil em Belo Horizonte, com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, e em São Paulo, com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp).
— Gustavo Dudamel não é apenas um grande maestro, mas um profissional que trouxe vida nova ao mundo orquestral. Onde vai, propõe repertórios, dá ênfase à musica latino-americana e aos contemporâneos. “Estancia” foi a primeira vez que o Corpo se apresentou com orquestra ao vivo. E além de tudo, ele é um sujeito muito legal — diz o diretor artístico do Corpo.