Mar que invade a orla, arrasta o que encontra pela frente, alaga pistas e calçadas e alcança os edifícios. Muitas vezes, pedestres, ciclistas e motoristas são pegos de surpresa. Quando se dão conta, já estão ilhados. Em períodos de ressaca, a cena é corriqueira no Leblon, Zona Sul do Rio — a mais recente foi no dia 29 de julho. E, nos mesmos moldes, pode se tornar comum também na Barra da Tijuca, Zona Oeste. Uma pesquisa do Laboratório de Geografia Marinha da UFRJ, publicada no último dia 22, alerta que, com a perda de dunas e restingas nas praias, o bairro corre risco de, em pouco tempo, se tornar a próxima vítima frequente dos estragos causados pela correnteza.
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Veja imagens da ressaca que atingiu a Barra da Tijuca no fim de julho
Os montes de areia às margens do calçadão da Barra são chamados de dunas frontais, que funcionam como uma barreira natural contra o avanço do mar durante as ressacas. As restingas, uma vegetação de Mata Atlântica, geralmente rasteira, por sua vez, retêm a areia das dunas, evitando que elas se dissipem. Nos últimos anos, porém, a degradação desses elementos pelo avanço da urbanização vem deixando a orla cada vez mais exposta. É o que observa Flávia Lins de Barros, pesquisadora, uma das autoras do estudo e professora do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRJ. A especialista não descarta a possibilidade de, em um ano, episódios como os do Leblon impactarem a orla barrense.
— Nos últimos 15 anos, a praia da Barra da Tijuca tem sofrido uma alteração muito grande dessas dunas frontais e restingas, com o avanço, sobre a faixa de areia, do calçadão e de quiosques, que vêm ampliando suas áreas, transformando-se em beach clubs. Um dos pontos mais críticos nesse sentido é a Praia do Pepê (Posto 2), que está sendo cada vez mais invadida por esses empreendimentos. Além disso, há muita devastação por pisoteio. Isso tem acontecido ao longo de toda a orla do bairro. Então, de um lado, há essa pressão da sociedade e, de outro, a elevação do nível do mar em virtude das mudanças climáticas, provocando o que chamamos de beach squeeze, ou seja, a praia está sendo espremida. — explica Flávia.

Imagens mostram avanço de quiosques sobre dunas e restingas na Praia da Barra
O estudo, assinado ainda por Pedro Piacesi e Pedro Costa e publicado na revista Quaternary and Environmental Geoscience, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), analisou a vulnerabilidade das praias da cidade do Rio, do Leme à Macumba, a impactos causados por eventos de ressaca. Com apoio financeiro de CNPQ, Faperj e Capes, os pesquisadores percorreram, nos últimos cinco anos, 48,5 quilômetros da costa carioca para analisar aspectos do perfil das praias, como altitude, declividade, largura média, potência da onda e tamanho do grão de areia, munidos de equipamentos como trena, mira topográfica e balizas. E identificaram que Leblon, Arpoador e Macumba continuam sendo as mais suscetíveis a danos.
— Tanto a praia da Barra quanto a do Leblon são muito expostas a fortes ondas. Então, em períodos de ressacas, cada vez mais frequentes e intensas, elas são atingidas diretamente. O que faz com que, hoje, a correnteza na Barra ainda não tome conta das pistas é o fato de ainda haver dunas frontais com restingas em vários trechos, podendo chegar a 7 metros de altitude em relação ao nível do mar e fornecendo uma barreira natural, além de ser uma praia mais larga e com uma declividade maior, por conta do grão de areia mais fino; já no Leblon, o calçadão é muito rebaixado em relação ao nível do mar, com até 4 metros de altitude. Porém, como essa proteção natural está sendo retirada, a praia da Barra, que ainda é resiliente e consegue se recuperar bem após uma ressaca, corre o risco de perder essa capacidade — alerta a pesquisadora.
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A especialista explica que a praia vai se tornando mais exposta à medida que perde espaço para a formação das dunas.
— As dunas costeiras precisam de alguns fatores para se formar, como disponibilidade de sedimentos arenosos secos e finos e ventos para transportar a areia. Ao chegar às praias, as ondas empurram a areia para a parte mais elevada, e, conforme perde sua energia, vai depositando os sedimentos, ficando os mais grossos e pesados perto da linha da água e os mais finos na parte de cima da praia. Estes, então, ficam disponíveis para serem levados pelos ventos da brisa marinha e se acumulam no final da praia. Essa movimentação precisa de espaço para ocorrer. Portanto, se você ocupa esse espaço, passa a não ter mais areia disponível para essa troca — pontua.
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Na sexta-feira (29), uma equipe de reportagem do GLOBO percorreu a orla da Barra e constatou o avanço generalizado de quiosques sobre a faixa de areia ao longo de toda a orla. São amplas estruturas, com mesas, cadeiras e deques, cercadas por altas estacas de madeira e por jardineiras. Tudo em Área de Proteção Ambiental (APA). Os exemplos são fartos, sobretudo na Praia do Pepê, onde os estabelecimentos chegam a atrapalhar a vista da praia de quem circula pelo calçadão, assim como na Praia da Reserva. De acordo com o decreto 29.881, de 18 de setembro de 2008, os quiosques devem ocupar apenas o calçadão, com seis mesas e quatro cadeiras cada. Além disso, por serem definidas como APA e Área de Proteção Permanente, incluindo areia, restinga e calçadão, as praias não podem receber construções, mas as violações são visíveis.
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No Posto 5, por exemplo, na altura do número 3.550, uma área de restinga foi transformada em pracinha, com aparelhos de madeira para exercícios físicos, como barra e abdominal, além de bancos, mesas e mastros de bandeiras concretados sobre a vegetação. Já no Posto 2, uma polêmica obra do 2º Grupamento Marítimo (2º GMar) do Corpo de Bombeiros sobre a faixa de areia continua a todo vapor mesmo após o Ministério Público Federal (MPF) ter acionado a Justiça, no último dia 19, para exigir sua demolição imediata. A corporação está construindo uma piscina semiolímpica para treinamento de salva-vidas e um muro de contenção de cerca de dois metros de altura. A estrutura de alvenaria em meio ao ambiente natural chama a atenção e é visível a quem circula pela praia.
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Os sinais de que a praia da Barra tem se tornado cada vez mais vulnerável estão postos. No dia 29 de julho, quando havia um aviso de ressaca emitido pela Marinha, alertando para ondas entre 2,5 e 4 metros de altura, a força da maré causou estragos no Posto 2 e assustou moradores. A cena foi observada com apreensão pela analista de sistemas Izabela Affonso, que vive na orla e é fundadora da SOS Praias Cariocas, entidade que, há três anos, atua na defesa dessas unidades de conservação e joga luz sobre os problemas que afetam a Barra da Tijuca.
— A água do mar chegou ao calçadão e à ciclovia junto ao Posto 2. Contêineres de lixo cheios de resíduos que estavam na areia foram parar dentro do mar, assim como muitos móveis e estacas de madeira dos quiosques e barras de ferro de quadras esportivas. Foi assustador — relata Izabela.
Não foi a primeira vez que o mar alcançou a orla. Em 2019, as fortes ondas destruíram o muro que separava o GMar da praia, arrastaram seu heliponto e engoliram calçadão e ciclovia. Em 2020, a ondas de três metros causaram o desmoronamento do calçadão no Posto 8. Moradora da orla, a aposentada Marlene Lima, de 70 anos, diz que teme o agravamento da situação e planeja se mudar.
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— O povo está brincando com a natureza, e, diante de toda essa agressão ao meio ambiente, eu tenho receio das consequências. Como moro próximo do mar, estou vendendo meu apartamento para ir para mais longe, porque estou com medo. Fico pensando: “Será que uma hora a água vai chegar aqui ao prédio?” — revela.
Quem garante o sustento na praia também está apreensivo com o futuro. É o caso do ambulante Marcelo Gomes, de 38 anos, que, há dois anos, vende cerveja, água e refrigerante no calçadão da Barra, na altura do número 1.120.
— Isso aqui era tudo areia, mas estão ocupando tudo. Isso é privilégio de alguns. Uma hora, a conta vai chegar. Hoje em dia, as ressacas já dificultam muito o nosso trabalho, imagina se a situação piorar. É ruim, porque dependemos disso. Em dias de sol, consigo faturar entre R$ 200 e R$ 300 por dia aqui. Quando não é possível, vendo cafezinho em outros lugares — conta.
Recuperação de dunas e restingas
O urbanista Canagé Vilhena, especialista em legislação urbanística e ambiental, observa que a exploração da ocupação intensiva sem planejamento e desconsiderando o desenvolvimento sustentável é uma característica histórica da cidade. Para o especialista, é urgente que essa lógica seja revertida.
— Esse é um vício que vem lá do período pré-colonial, com a exploração da Mata Atlântica. E, apesar de a Barra ser considerada área nobre, ela segue o mesmo desleixo do planejamento urbano, expondo a população a sérios riscos. A solução é fazer com que a política urbana esteja em harmonia com a ambiental. Esses dois aspectos não podem ser tratados de forma separada — argumenta.
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A pesquisa da UFRJ pretende servir como instrumento para o desenvolvimento de políticas públicas voltadas a garantir a segurança dos frequentadores das praias e proteger infraestruturas próximas à costa. As soluções para o problema, aponta o estudo, devem ser baseadas na natureza, como restauração de dunas e restingas, evitando obras de engenharia.
A Secretaria municipal de Meio Ambiente e Clima (Smac) afirma que tem um projeto que estimula a adoção com recuperação de vegetação nativa. Até o momento, informa, 60 módulos de restinga estão sob cuidados de adotantes ao longo da orla, mas não foi especificado quantos ficam na Barra. A pasta esclarece que, ao assinar o termo de adoção, todo o adotante se responsabiliza pela manutenção dos módulos adotados, cujos serviços incluem manejo e limpeza.
Em relação ao avanço dos quiosques sobre a faixa de areia e à praça em área de restinga, a prefeitura diz que está organizando uma ação com os principais órgãos que atuam na orla, a fim de conscientizar os donos de quiosques sobre seus direitos e deveres. Além disso, destaca que a Patrulha Ambiental atua diariamente na fiscalização e sanções nessas áreas.
A Smac enfatiza também não autoriza nenhum tipo de atividade que produza impacto negativo sobre as áreas de preservação da biodiversidade que estão sob seus cuidados.