Uma sucessão de cortes de gastos e reestruturações internas nos últimos meses já havia transformado a Nasa, tradicional símbolo de liderança científica e tecnológica nos Estados Unidos e no mundo, em um universo de incertezas. Com a proposta do governo de Donald Trump para o orçamento de 2026, o destino da agência espacial americana caminha para um cenário ainda mais indefinido: enquanto cresce a ênfase na exploração espacial humana, com o retorno à Lua como objetivo principal, missões científicas e importantes áreas de pesquisa podem sofrer severas reduções de recursos e pessoal. A “mudança de rota”, na avaliação de analistas, pode comprometer o amplo protagonismo da agência e abrir espaço para que outras potências, sobretudo a China, assumam a dianteira em áreas-chave em pesquisa no setor.

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Desde que retornou à Casa Branca em janeiro, Trump já assinou uma série de ordens executivas que congelaram contratações, limitaram repasses e determinaram revisões administrativas voltadas a enxugar estruturas internas de vários escritórios federais.

Na Nasa, o primeiro grande impacto veio em março, com o fechamento de escritórios inteiros, entre eles o de Cientista-Chefe — até então responsável por aconselhar o diretor da agência em questões científicas, orientar as direções de pesquisa, entre outras funções estratégicas.

Um dos 23 funcionários afetados nessa primeira leva, justificada pelo governo como “redução de gastos”, foi o astrofísico Kartik Sheth, que atuava como um dos cientistas-chefes associados da agência. Segundo ele, o aviso veio de forma súbita e sem muitas explicações além dos direcionamentos sobre o desligamento.

A decisão, contou, foi uma surpresa, já que seu gabinete — assim como os de Política, Tecnologia e Diversidade, também fechados — não tinha autoridade orçamentária própria, pois atuava como um órgão consultivo.

— As pessoas que foram demitidas, no geral, tinham 15, 20 anos de experiência. Agora, tudo se perdeu. — disse ao GLOBO. — Desde então, pensamos que mais pessoas também seriam demitidas, mas não aconteceu. Eles alcançaram os objetivos de redução da força de trabalho ao empurrar agressivamente o programa de “aposentadoria acelerada”.

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O programa mencionado por Sheth foi criado pela administração Trump em janeiro, como parte dos esforços do governo para reduzir o quadro de funcionários federais, propondo uma licença administrativa remunerada até uma data de demissão pré-acordada. Cerca de 4 mil funcionários estão prestes a deixar a agência sob essas condições a partir de janeiro de 2026, o que representará uma redução de aproximadamente 20% da força de trabalho atual, segundo estimativas da própria Nasa. Desses, mais de 2.100 ocupam posições estratégicas em ciência, tecnologia e gestão.

O projeto de orçamento para a agência para o ano fiscal de 2026, apresentado pela Casa Branca em maio, amplia o cenário de incertezas. A proposta ainda tramita no Congresso, com prazo para votação até 30 de setembro, e prevê cortes de cerca de 24% no orçamento, reduzindo os recursos de US$ 24,8 bilhões (R$ 133 bilhões) para US$ 18,8 bilhões (R$ 100 bilhões) e afetando até 5 mil funcionários. Os parlamentares, porém, ainda discutem alternativas com apoio bipartidário, que buscam manter os níveis de financiamento da agência próximos aos do ano fiscal de 2025.

Se aprovado nos termos do governo, o plano forçaria a agência a operar com o menor orçamento e pessoal desde o início da década de 1960, segundo o The Planetary Society, ONG dedicada ao avanço da ciência e exploração espacial, baseada em Pasadena.

De acordo com a análise da ONG, nesse cenário, apenas a Diretoria de Exploração, responsável pelos voos espaciais tripulados para a Lua (e possivelmente para Marte), seria “poupada”. Todas as outras sofreriam reduções substanciais: a de Ciência teria o orçamento cortado em quase 47%, o que poderia colocar em risco mais de 40 missões espaciais atuais e planejadas.

Cortes para orçamento da Nasa são os maiores já propostos — Foto: Editoria de Arte / O Globo

O plano chamou a atenção de parceiros internacionais e analistas do setor espacial, que avaliam possíveis impactos em projetos colaborativos e na liderança americana na área.

A Agência Espacial Europeia (ESA) informou que avalia o impacto de pelo menos 19 projetos conjuntos ameaçados, entre eles, missões de grande porte como o observatório de ondas gravitacionais Lisa e a missão EnVision a Vênus. Analistas europeus alertam para impactos nas aspirações da Europa à missão lunar caso os cortes ocorram.

“Os assentos para astronautas europeus depois da Artemis III desapareceria”, disse Alberto Rueda Carazo, pesquisador do think tank Instituto Europeu de Política Espacial (Espi), citado pela Euronews.

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Em maio, o diretor-geral da ESA, Josef Aschbacher, declarou que a redução dos recursos americanos poderia obrigar o continente a reconfigurar sua estratégia de cooperação com a Nasa. Em junho, a ESA discutiu alternativas para mitigar riscos, incluindo parcerias reforçadas com outros países. Nos bastidores, até mesmo a possibilidade de diálogo com a China entrou em pauta, dizem analistas.

— Uma vez que você deixa de lançar alguma missão espacial, você está impedindo a produção de dados que poderiam ser utilizados internacionalmente, sem custo nenhum — disse ao GLOBO o diretor do Observatório do Valongo da UFRJ, Thiago Signorini Gonçalves.

Segundo o professor, a interrupção de programas, limita avanços científicos globais, afeta a formação de novas gerações de cientistas e abre espaço para que outras agências, como a ESA, assumam maior protagonismo em áreas onde a Nasa historicamente liderou.

Enquanto a Nasa enfrenta desafios internos, outros países expandem suas capacidades espaciais e estreitam colaborações. É o caso da China, a maior “ameaça” dos EUA na corrida à Lua, além do incentivo à pesquisa, tem avançado rapidamente em seu programa espacial, com planos ambiciosos para a exploração do satélite. A missão Chang’e 7, prevista para 2026, quer explorar o polo sul lunar, buscando sinais de água e avaliando recursos para futuras missões tripuladas. O país também lidera, com a Rússia, a construção da Estação Internacional de Pesquisa Lunar (ILRS), com o objetivo de estabelecer uma base lunar permanente até 2035.

Outros atores importantes, como Japão, Índia e Canadá, também buscam alternativas de cooperação e lançamentos próprios.

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Na análise de Wendy Whitman Cobb, pesquisadora de política espacial na Escola de Estudos Avançados do Ar e do Espaço, os cortes, caso passem, podem ter impactos limitados a curto prazo devido à experiência e capacidades existentes nos EUA.

— No entanto, se afetarem projetos internacionais, a médio e longo prazo, isso pode representar um problema. Mas também pode criar novas oportunidades, de modo que a responsabilidade pela liderança dos EUA no espaço seja apenas transferida de uma organização governamental para uma indústria mais ampla — disse ao GLOBO.

Com essa ênfase na corrida até a Lua, o plano manteria as missões Artemis II e III (previstas para 2026 e 2027), mas com a subsequente eliminação do foguete SLS e da cápsula Orion, bem como o cancelamento da estação lunar Gateway, elementos centrais da arquitetura do programa. Futuramente, a administração sugere que veículos privados possam substituí-los, mas ainda não há cronogramas definidos para que isso ocorra.

A Estação Espacial Internacional (ISS) também sofreria uma redução de mais de US$ 500 milhões (R$ 2,6 bilhões) em pesquisas e operações, o que levanta dúvidas sobre sua continuidade até o final da década.

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Na ciência planetária, missões como a Mars Sample Return, que busca trazer amostras de Marte para análise na Terra, e Maven, que estuda a atmosfera marciana, enfrentam risco de suspensão ou cancelamento. Telescópios e sondas renomadas, como Chandra e New Horizons, aparecem na lista de cortes, comprometendo pesquisas em astrofísica. Projetos de observação da Terra também correm risco, o que afetaria o monitoramento ambiental e climático global.

— O foco da administração Trump agora é chegar até a Lua antes dos chineses — disse uma pesquisadora do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), que falou ao GLOBO sob condição de anonimato. — Por causa disso, a redução da parte de ciência vai ter um grande impacto nas universidades e nos centros de pesquisa.

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