Com dois LPs lançados nos anos 1970, sem muita repercussão, pela gravadora Som Livre; e uma faixa, “Poema rítmico do malandro (balanço do crioulo)” (1971), que virou uma espécie de clássico do samba-rock, a carioca Sonia Santos tinha tudo para ser apenas um daqueles nomes que se lê, com alguma curiosidade, nas enciclopédias sobre música brasileira. Isso, se não estivesse aí vivíssima da Silva e ativa, aos 81 anos, para reivindicar seu lugar na música brasileira — mesmo que de Los Angeles, onde vive há cerca de 34 anos, cantando música brasileira e jazz.
- Chuva, Mariah Carey ‘blindada’ e ator famoso com ‘traje inadequado’: Como foram os bastidores do Amazônia Live
- Ca7riel & Paco Amoroso: Rio de Janeiro oferece consagração à nova sensação viral do pop mundial
Sonia é a estrela do mais novo episódio da série Os Ímpares, que promove encontros de artistas da contemporaneidade com discos antológicos e pouco revisitados da música brasileira das décadas de 1960, 70 e 80. Lançado no último dia 25 no Canal Curta e já disponibilizado na Prime Vídeo, o programa mostra Xande de Pilares e a ex-The Voice Brasil Priscila Tossan regravando duas faixas de “Crioula” (1977), segundo LP da cantora (respectivamente, “O bom malandro” e “Lavadeira”). Xande, que até então não conhecia a obra de Sonia, ficou encantado.
— O som dela é o tipo de música que eu gosto de ouvir desde que me entendo por gente. Um samba sincopado, que eu achei que não existisse mais, que nunca mais ia ter. E tem o fato de ser uma mulher cantando esse tipo de samba. Para mim, Sonia Santos é resistência, é persistência — exalta-se o cantor, em depoimento ao GLOBO. — O machismo na música tem que acabar. Tem que mostrar para outras mulheres que é possível, sim. Sou da época de Elizeth Cardoso, Elaine Machado, Elza Soares, Jovelina Pérola Negra, Leci Brandão… a gente precisa reviver isso!
Outro que tem se derramado por Sonia Santos é o americano Adrian Younge, produtor e multi-instrumentista que, com o projeto de discos e shows Jazz is Dead, veio jogando luz sobre artistas imortais da MPB como João Donato, Marcos Valle, Arthur Verocai, Azymuth, Carlos Dafé e Joyce. Ao GLOBO, ele se declarou:
— Sonia Santos é uma lenda viva. Ela é um exemplo fundamental de artista afro-brasileira, pois é possível ouvir os ancestrais em sua voz dinâmica. A cultura e a força presentes em sua música contam histórias que vão além de suas letras. Recomendo a todos mergulharem no seu maravilhoso catálogo musical.
Assim como Sonia, Adrian Younge também vive em Los Angeles, e recentemente publicou em sua rede social um vídeo do encontro, em seu estúdio, da cantora com Carlos Dafé, que gravava seu disco para o Jazz is Dead. Dafé e ela são velhos conhecidos da noite carioca, do tempo em que os músicos se encontravam na Praça XV, depois dos shows nas boates, para forrar o estômago no Angu do Gomes.
— O Adrian tinha ido no meu aniversário de 80 anos e me falou que o Dafé estava em Los Angeles. Aí eu fui ao estúdio dele, que é escondidinho, atrás de um salão de beleza, e disse à mulher que me atendeu que era da família. O Dafé fez um escândalo quando me viu! — recordou-se, aos risos, Sonia Santos, em entrevista ao GLOBO, no Rio, onde tinha ido para rever a família. — Aí o Adrian falou: “Pôxa, há quanto tempo você mora aqui?” E eu: “Desde sempre, você só não sabia de mim porque eu estava pelas escolas por aí afora.” Fazer show em escola é o maior barato. Eles querem saber de onde veio a capoeira, como é o samba…
O caminho até Los Angeles foi longo. Nascida no bairro da Saúde e criada em Ramos (sob o som do bloco Cacique de Ramos e da escola do samba Imperatriz Leopoldinense), Sonia Santos cantava desde criança. Mas seguiu sua vida como normalista, professora de escolas na Zona Norte, estudante de Serviço Social e assistente social na Marinha. Foi aí, quando a música se afastava dela, que veio o concurso de Miss Renascença (o clube no Andaraí), do ela qual acabou saindo com o prêmio de consolação de Miss Simpatia e uma oportunidade para cantar.
Quem ouviu Sonia Santos ali foi o empresário Sérgio Cinelli, que a levou para se apresentar nas boates da Zona Sul. Ela cantou no Castelinho, no Arpoador, e no Bierklause em Copacabana (ao som do jazz com o grupo Fuzuê). Alcione, Emílio Santiago e Djavan eram seus colegas de microfone na noite. Enquanto isso, Sonia fez vocais de apoio para Marcos Valle no Canecão, gravou algumas músicas (entre elas o “Poema rítmico do malandro”) e teve a sua grande chance quando foi chamada para substituir Eliana Pittman no show Brazilian Follies, ao lado de Pery Ribeiro, a convite do diretor Maurício Sherman.
Ali, o empresário João Araújo a viu no show e a levou para a Som Livre, gravadora da TV Globo da qual era diretor. Lá, Sonia Santos cantou músicas para trilhas de novelas, como “O Rebu” (de 1974, toda composta por Raul Seixas e Paulo Coelho — a ela coube a canção “Porque”), até estrear em LP em 1975 com “Sonia Santos”, um disco com muitos sambas e choros, produzido por Guto Graça Melo.
— Uma coisa de que eu lembro é a simpatia que a Sonia sempre teve, ela sempre foi uma pessoa muito divertida. E muito aplicada. Ela estava muito feliz fazendo esse disco — rememora-se Guto, surpreso com o fato de o LP estar completando 50 anos. — Mas ali era o início da Som Livre, não chegou a acontecer muita coisa, apesar de a gente ter tentado de todo jeito que acontecesse.
Sonia lembra de ouvir de Boni, o vice-presidente de operações da Globo, “que se eu não gritasse, eu seria a maior cantora do Brasil”. Dois anos depois do primeiro LP, ela gravaria “Crioula”, cuja faixa-título é uma composição sua em parceria com Angela Suarez. A cantora, por sinal, se orgulha de ter algumas canções feitas especialmente para ela por sumidades como Tim Maia (“Somos América”), Jorge Ben Jor (“Pátria amada”) e “Luiz Melodia (“Gerações”).
— O Tim fez essa no estúdio. Ele disse: “Ô, Sonia Santos, eu tenho uns acordes aqui, vou botar umas palavras, vai ficar bom para você!” E escreveu a letra na perna, doidaço — diverte-se ela. — O Luiz também foi ao estúdio nessa época e, num break das gravações, falou assim: “Ô, Soninha, vamos ali comer um sushi”. E eu: “Luiz, sushi é aquele negócio de peixe cru?” Aí ele foi comigo na Barra, que ainda era descampada, me levou a num lugar que ele conhecia, e aí me apresentou ao tal do sushi. Olha, até hoje eu sou fã!
- Vini Jr. posta fotos em mansão de Madri durante visita de Virginia Fonseca: ‘Eu sou quem eu sou’
Na capa de “Crioula” (e nas fotos de divulgação da época, como a que abre a reportagem), Sonia Santos investia na beleza e na sensualidade. Hoje, ela meio que tenta se fazer de desentendida.
— Eu não prestava atenção nisso. O Silvinho (o cabeleireiro das estrelas da época) puxava isso, mas eu queria cantar, não queria saber de ganhar dinheiro. Eu queria cantar e cantar coisas que as pessoas gostassem de ouvir — jura ela, que confirma ter sofrido muito assédio masculino na época. — E feminino também! Tanto que nos Estados Unidos eu casei com a Ana (Gazzola, cantora gaúcha, parceira de shows, com quem vive há 34 anos). No Brasil, nem pensar! O Itamar (José Itamar de Freitas, autor de canções que ela gravou e jornalista, por anos diretor do “Fantástico”) falava para mim: “Discutir religião e opção sexual, jamais!” E eu fiquei na minha, porque eu achava as moças lindas, os rapazes maravilhosos… como é que eu ia lidar com isso, sendo bissexual nesse país, naquela época? Nem pensar!
Primeira negra a aparecer em um programa da TV Globo com uma cabeleira black power (na verdade, uma peruca do Brazilian Follies, que usou num clipe do “Fantástico”), Sonia Santos chegou a militar pela cartilha da afirmação black: participou do primeiro congresso da mulher negra latino-americana e caribenha e, em 1975, na Som Livre, lançou o funk-jazz “Tributo a Cassius Clay” (nome, antes da conversão, do pugilista e ativista negro Muhammad Ali), canção composta por Nei Lopes e Reginaldo Bessa.
— Essa era a música que me movia, que falava das coisas que eu ouvia o meu pessoal falar. Então, eu e encontrei apoio lá (no exterior) porque lá eles adoram o groove que eu uso, que mistura o funk e o samba com aquelas coisas afro — diz.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/k/6/il5zvfQ4qpDA4Bm7qBSw/112371058-rio-de-janeiro-rj-02-01-1974-sonia-santos-cantora-foto-eurico-dantas-agencia-o-globo-.jpg)
Mas os Estados Unidos só foram se revelar para ela como destino em 1990.
— A companhia de um italiano, o Franco Fontana, tinha comprado os direitos do (espetáculo) Oba Oba, do Sargentelli, e ia fazer uma turnê por lá. Eu era bastante resistente aos Estados Unidos, se fosse para a Europa eu ia no ato. Então, meu irmão caçula, o Estevão, disse: “Sonia, vai, só para sair daqui, tua vida não é aqui!”. E aí eu falei: “Ah, tá, só se for para começar pela Broadway, né?” — conta ela, que aceitou o convite de Franco para ser a cantora principal do espetáculo e iniciou a turnê justamente no Marquis Theater, na Broadway, em Nova York, em 28 de fevereiro de 1990 (“ainda estava nevando”, recorda-se).
Naqueles meses, Sonia viajou bastante pelos EUA. Ela diz que não gostou de Miami porque a cidade “era quente, úmida e lá só se falava espanhol”. Los Angeles foi a última parada da excursão. Ela se recorda que, quando a porta do avião se abriu, a primeira coisa que viu foi as palmeiras (“e me apaixonei por elas”). Nesse ínterim, Estevão morreu, ela brigou com Franco Fontana (“eu estava perturbada”), largou o Oba Oba e aí o dono de um jazz club de L.A., o La Ve Lee, que a tinha visto cantar, chamou-a para cantar lá.
Sonia ficou dois anos no La Ve Lee e em outro em Newport Beach (também na Califórnia, com o pianista Antonio Adolfo). Quebrava o galho ainda trabalhando como guia de turismo (“eu dizia que era cantora, cantava, ganhava gorjetas boas e ainda vendia meu disco”). Em 1994, com Ana Gazzola (que conhecera nos EUA), em plena Copa do Mundo de Los Angeles, teve a ideia de montar um show de música brasileira.
— Naquela época, todo mundo queria saber da cultura brasileira. Aí a Ana propôs que ela seria o Euro Brazilian Jazz e eu, o Afro Brazilian Jazz. Juntamos as duas coisas e fizemos o Brasil Brazil Show. Olha, nós ganhamos dinheiro! O maior cachê que eu ganhei na minha vida foi lá, por causa da música brasileira — gaba-se. — Cantamos em escolas, universidades. Eu tinha medo, mas fomos até aos estados mais racistas. Ela, loura, linda e alta; eu, preta e pequenininha. Nós fomos cantar numa universidade em Oklahoma e, quando entramos num restaurante, a recepcionista nem olhou para mim, só para a Ana.
- Você vai se sentir velho: 8 filmes que fazem 20, 40, 60 anos e voltam aos cinemas em 2025
Hoje, as duas têm uma vida confortável, casa própria, e seguem excursionando com o Brasil Brazil Show. Espírita, Sonia gravou em 2016 um disco de canções religiosas, “Imagine”. Admiradora de Ludmilla, Iza, Teresa Cristina, Mart’nália e Emicida, ela diz ter vontade hoje de voltar a viver no Rio e de participar da cena musical do Brasil. Público, com certeza, não faltará.