Antes de iniciar a entrevista com Celso Ferrer, CEO da Gol, comentei o quanto detesto frases de efeito sobre carreira. Ironia: acabei eu mesmo repetindo um destes chavões, do qual ele fugiu com elegância — padrão ao longo da conversa para o terceiro capítulo desta newsletter.
Ferrer falou dos limites da IA (“veio para ficar, mas esta primeira onda é de muito teste”), criticou a ideia de que mudar de emprego seja um valor em si e lembrou o período mais difícil da sua trajetória: os recém-encerrados dois anos de reestruturação da Gol. “Na hora que precisei, vi como relações de confiança e longo prazo são fundamentais”, disse o executivo formado em economia e relações internacionais.
- Quer receber a próxima edição da série Acelerador de Carreira? Assine a newsletter e receba dicas diretamente por e-mail.
Acelerador de Carreira #3 | Celso Ferrer, CEO da Gol
Previsões sobre os impactos da IA no mercado de trabalho estão em todas as partes. A IA já substituiu algum posto de trabalho na Gol?
Não. A IA veio para ficar, mas esta primeira onda ainda é de testes. Criamos um time de facilitadores para garantir segurança da informação e orientar cada área sobre como usar essa tecnologia para ganhar produtividade. O foco é ganhar agilidade no atendimento ao cliente — não eliminar postos de trabalho.
O que já existe de concreto?
Criamos um robô, a Gal, que reúne todas as respostas e manuais para o público interno. Hoje auxilia novos funcionários no check-in; amanhã, queremos levá-la também aos clientes. Mas com cautela.
Olhando mais para frente, quais são as áreas mais promissoras para o uso da IA?
Atendimento ao cliente e departamentos com muito trabalho manual, como fiscal e tributário. Mais adiante, RH, pela folha de pagamento, jurídico, na revisão de contratos. Na aviação, se contrata um monte de escritórios de advocacia para fazer análises de ações. A IA pode identificar padrões, destacar casos que já deram certo e apontar a melhor resposta a cada cliente — sempre com ganho de produtividade.
Você entrou como estagiário na Gol em 2004 e nunca mais trabalhou em outra empresa. Por que casos como o seu são cada vez mais raros?
Hoje se vende a ideia de que é preciso acumular experiências, até nos relacionamentos, para ser mais completo como profissional ou pessoa. Nessa lógica, quanto mais rapidamente você tiver um repertório variado, melhor.
Para você, mudar de empresa várias vezes melhora a qualidade profissional?
Não. O que conta não é a quantidade de CNPJs no currículo, mas as experiências e situações a que a pessoa foi exposta. Na maioria dos casos, vejo mais coerência em quem permaneceu mais tempo em uma empresa ou indústria, porque conseguiu completar ciclos. Não digo que todos precisem seguir meu caminho, mas é importante ter um fio condutor na carreira, algo que permita fechar ciclos e crescer.
Por que ciclos longos são fundamentais?
Porque é preciso criar uma reputação e uma rede de apoio. Sem isso, você não consegue executar o seu trabalho de uma forma bacana. Isso vale para o estagiário, diretor ou CEO. E leva tempo.
Por que você fez ao mesmo tempo graduação em relações internacionais e em economia?
Cresci desenhando avião. Meu presente de aniversário era comer uma batata frita no terraço que tinha no Aeroporto de Congonhas. Mas, quando chegou a hora do vestibular, caí na realidade. Não tinha dinheiro para ser piloto. Escolhi relações internacionais porque tinha bastante ciência política, que era o que eu gostava. Mas era década de 1990, esse curso estava começando. Então, escolhi economia para me preparar para o mercado de trabalho. Precisava trabalhar desde o primeiro ano da faculdade.
E o que diz da experiência de começar a trabalhar enquanto fazia duas faculdades?
Pra mim, foi muito rico. Se o trabalho tem a ver com o que você está estudando, faz muito sentido: sua experiência dobra logo de cara. A formação dos executivos brasileiros é diferenciada porque eles trabalham e estudam ao mesmo tempo: combinamos faculdades de qualidade com jovens que, aos 18 anos, já estagiam e aceleram sua maturidade. Com a elite brasileira hoje estudando fora, acho que vamos perder essa combinação muito poderosa.
Buscar estágio na Gol foi uma aposta em fazer o que você gostava?
Foi. Mas não no sentido daquelas frases feitas sobre carreira, que você comentou no início da nossa conversa. Você tem que fazer o que gosta, mas não necessariamente o tempo todo. Era em uma empresa de aviação, que sempre foi um fio condutor para mim, mas a oportunidade de estágio era em uma área em que a minha formação em economia ia ser muito importante, a de precificação. Pensei: deixa eu conhecer esse mundo, deixa ver como atuo aqui.
Dali em diante, você teve uma ascensão meteórica, não?
Talvez esse não seja o melhor adjetivo, porque houve um momento em que me deparei com um negócio que foi muito louco. Passei por várias áreas da Gol, me tornei gerente aos 24 anos e, aos 28, larguei tudo para me candidatar a uma vaga de piloto. Era uma oportunidade única de realizar meu sonho — eu usava parte do salário para pagar minhas horas de voo. Até os 30 e poucos anos, a gente ainda tem essa liberdade de arriscar. O pessoal do RH falava: “você é maluco”. Não estava nem aí. Queria ir atrás do que fazia sentido para mim. Fui ser piloto, casei nessa época, foi uma fase excelente da minha vida.
Por quanto tempo você foi piloto?
Fiquei dois anos e meio só voando. Um dia, meu ex-chefe ligou oferecendo o cargo de diretor de frota. O que me impulsionou: a combinação de entender de finanças e ter experiência como piloto. Em momentos como esse, de decisões difíceis, nunca me baseei em salário. Sempre busquei estar cada vez mais preparado e também fazer o que gosto.
Você chegou a CEO com 39 anos, o que é cedo no setor. O que esse desafio te ensinou?
Deixei lacunas de formação no caminho e precisei aprender rápido. Nunca tinha conduzido uma reestruturação completa como a dos últimos dois anos. Nesse processo, percebi o valor das relações de confiança e longo prazo. Foram conselheiros, acionistas, credores e parceiros que me sustentaram nos momentos mais difíceis. Tomei decisões duras, mas necessárias. Agora, entramos em um novo ciclo: é hora de colocar a Gol em outro patamar. Ser CEO muda muito conforme o momento da empresa.
- IA nas empresas exige cautela, não pressa.
- Reputação não vem de pegar atalhos, mas de concluir ciclos.
- Estudar e trabalhar ao mesmo tempo é experiência em dobro.
- Faça o que gosta, mas saiba: há mais para fazer.
- O papel do CEO muda com a fase da empresa.