Era uma manhã de sexta-feira quando a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) chegou acompanhada da primeira-dama, Janja, e da ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, a uma igreja batista em São Cristóvão, no Rio. A parlamentar evangélica, que frequenta uma igreja em Niterói, intermediava mais uma vez um encontro de representantes do governo Lula com um grupo de fiéis. O evento reuniu cerca de 100 mulheres, no dia 4 de julho, segundo a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, e tinha o objetivo de promover o que chamaram de “escuta ativa” sobre as políticas para o meio.
— Eu sou evangélica e não abro mão. Quero ter a liberdade de andar com a minha Bíblia debaixo do braço, falar na praça, onde eu quiser — disse a deputada ao grupo. Registros nas redes sociais mostram Benedita cantando um salmo, a benção de uma pastora e o trio em oração comunitária.
Pressionados pela popularidade do governo e pelo avanço da direita nas periferias de grandes cidades nas eleições municipais, representantes do governo, do PT e da Fundação Perseu Abramo, instituição ligada ao partido, têm procurado maneiras de estabelecer um diálogo eficiente com os evangélicos. Janja e Lula participaram, na semana passada, do podcast “Papo de Crente”, com a primeira-dama arriscando um louvor, “Deus Cuida de Mim”, de Kleber Lucas. Em Nova Iorque, no domingo, 21, antes da Assembleia-Geral das Nações Unidas e enquanto atos contra a anistia ocorriam em todo o Brasil, ela participou de um cultona igreja batista The Abyssinian Baptist Church, no bairro do Harlem.
Para alguns dos principais auxiliares ouvidos pelo GLOBO, a estratégia de aproximação da esquerda, para ser efetiva, passa por driblar figuras midiáticas como Silas Malafaia ou que dirigem igrejas enormes e apoiam abertamente o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), dando preferência a líderes religiosos próximos da população e que não se sentem confortáveis com o uso eleitoreiro dos cultos.
— O universo evangélico, por ser tão plural, tem um volume enorme de lideranças. O Marco Feliciano, deputado federal, era pastor de uma denominação de em torno de 100 igrejas. No Brasil, existem milhares de pastores como ele, lideranças intermediárias que não escolheram se tornar deputados federais e não estão necessariamente ligadas ao bolsonarismo — argumenta Alexandre Brasil, professor da UFRJ e diretor de programa da secretaria executiva do Ministério da Educação.
De um modo mais amplo, a esquerda se empenha em demonstrar que há pluralidade. De pastores em igrejas consideradas “progressistas” a coletivos que focam numa comunicação jovial nas redes sociais, grupos trabalham para contrapor o discurso de hegemonia da direita. Pesquisa do Datafolha realizada entre 8 e 9 de setembro mostra que 64% dos evangélicos reprovam o governo Lula, enquanto 33% o aprovam. Em agosto, antes portanto do julgamento de Bolsonaro no STF, o instituto mostrou que o ex-presidente tinha menos da metade da rejeição do petista no segmento: 29% a 64%.
— Há, sim, uma elevação em relação aos números da sociedade, mas não é possível dizer que todos os evangélicos foram capturados. E aí vem nossa crítica à bancada evangélica, porque ela é formada por parlamentares que se autodeclaram evangélicos, mas que não receberam uma procuração para falar em nome de todos — diz Nilze Valéria Zacarias, coordenadora nacional da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, criada em 2016.
Foi a partir de um convite de amigos do grupo que Sérgio Dusilek, pastor de uma igreja batista na Barra da Tijuca, no Rio, com cerca de 260 membros, declarou apoio a Lula em 2022 com base em sua leitura de que a democracia não resistiria a um novo mandato de Bolsonaro. O gesto, feito em caráter pessoal, gerou reação violenta nas redes, com ofensas e ameaças. Mesmo não se declarando petista, Dusilek participou de uma reunião com a ministra Gleisi Hoffmann, em que aconselhou o governo a priorizar o diálogo com pastores de pequenas e médias comunidades, em vez dos “barões da fé”.
— O caminho é conversar com o pessoal que tem contato com o chão da igreja — analisa Dusilek. — Acho que tem uma grande massa, que é o centrão conservador, no meio evangélico, que pode ser tocada pelas pautas que o governo Lula defende. O evangélico raiz não aguenta ver o outro passando fome. O que a extrema-direita faz é deslocar a pauta para pontos que não são centrais na Bíblia, justamente para criar o medo, mas o grande centrão evangélico está aberto para a realidade.
Ricardo Gondim, pastor da Igreja Betesda, em São Paulo, outro representante que tem conversado com petistas, reconhece algum esforço da gestão Lula em dialogar com o segmento, mas critica a abordagem que por vezes mira as grandes igrejas. Nos últimos três anos, o petista enviou uma carta ao apóstolo Estevam Hernandes, responsável pela Marcha para Jesus, e também enviou seu ministro Jorge Messias para o evento, em uma tentativa de se aproximar das grandes igrejas.
— Eu tenho essa crítica ao Lula. Uma vez eleito, parece que ele esqueceu. E parece que quando quer dialogar com o movimento evangélico, procura aquele que tem voto, que é o neopentecostal, o da extrema direita — afirma.
O pastor fez campanha para Lula em 2022, mas pondera que foi uma posição pessoal e não se pode usar a igreja como palco da disputa do poder político. Na Betesda, ele não leva nenhum político ao púlpito em campanha.
— A igreja deve ser uma espécie de grilo falante no ouvido do Estado. Por isso que a igreja não pode ser partidária, tem que manter independência.
Flávio Conrado, pesquisador da Casa Galileia, pondera que pastores e artistas que manifestaram contrariedade a Bolsonaro e algumas das suas principais pautas, como a armamentista, ficaram marcados como “de esquerda” e “comunistas” nos últimos anos, levando a dificuldades e abandono da pregação ou das suas carreiras.
A lista envolve o teólogo e ex-pastor da Igreja Presbiteriana da Barra, no Rio, Antônio Carlos Costa — ele era tolerado enquanto ativista contra a violência por meio da ONG Rio de Paz, aponta Conrado, mas não quando passou a questionar a proximidade institucional com o ex-presidente. Casos de pastores como Nilson Gomes, da Assembleia de Deus, e Ed René Kivitz, expulso da Ordem dos Pastores Batistas, costumam ser lembrados e dão margem para especulações de que teria havido um movimento orquestrado para intimidar os sacerdotes.
— As pessoas que circulam muito, quando assumem um discurso, uma linha política, isso pode ser bastante problemático. Então, tem muita gente que, nos bastidores, adota uma posição e publicamente acabam evitando falar desses temas, exatamente para não serem rotulados — destaca.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/S/C/fF4gPzQS2fSVBfogQprQ/captura-de-tela-2025-09-16-120931.png)
A Betesda, por exemplo, reúne hoje cerca de 500 pessoas em seus cultos matinais aos domingos em Santo Amaro, Zona Sul de São Paulo. Antes, o público superava 2,5 mil fiéis, mas houve uma debandada após Gondim declarar abertamente que receberia pessoas LGBTQIA+. Em 2018, a situação ficou ainda mais delicada quando ele se colocou contra Bolsonaro.
— Não conseguia absorver que pessoas da minha igreja, que me tinham como um líder espiritual, de alguma maneira desligassem o botão de tudo o que eu falava por um cara daquele — conta o pastor.
Aposta na comunicação digital
O embate também se espalha para além das igrejas e vai para o campo digital. Criado em 2021, o “Novas Narrativas Evangélicas” traz, em sua página de Instagram, memes relacionados ao universo religioso e com uma estética jovial. “Deus ama todes”, diz uma das publicações com as cores da bandeira LGBTQIA+, feita em junho. Temas como preservação ambiental, vício em jogos, desigualdade social e violência policial também ganham destaque nas redes e no podcast do coletivo.
A comunicação, conta a diretora Luciana Petersen, virou a principal ferramenta do grupo, que tenta usar a própria Bíblia para disseminar discursos de inclusão, fraternidade e justiça social. Em 2022, o coletivo fez uma campanha intitulada “Livre para Votar”, afirmando que Deus não tem candidato. Luciana lembra que o grupo foi duramente atacado e que a estratégia de enfrentamento direto é menos efetiva.
— A gente aposta na disputa a partir da linguagem, de alguns conceitos que a Bíblia traz, porque a Bíblia é passível de interpretações. E acho que não funciona brigar com os extremistas. A gente tem tentado ir por um caminho de dialogar com quem tem alguma abertura. E essas pessoas, por incrível que pareça, são muitas nas igrejas. Pessoas não radicalizadas, que ainda enxergam uma possibilidade de partir do Evangelho, de questionar, o que é uma coisa muito protestante — explica.
/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2025/j/b/aVyzhDRRyBP1fRoZJ1WA/captura-de-tela-2025-09-16-120857.png)
Dilema da politização da fé
Entre evangélicos de esquerda com mandato, a instrumentalização da religião costuma ser uma crítica recorrente contra os rivais, o que estabelece uma fronteira para abordagens típicas, mas que não é tão claramente delimitada. O deputado federal Henrique Vieira (PSOL-RJ), pastor da Igreja Batista do Caminho, por exemplo, cita o poderio econômico e midiático das grandes igrejas como ferramentas que ajudaram a fortalecer o pensamento ultraconservador no meio.
— Não quero fazer com a igreja o que a direita faz, quero uma igreja relevante socialmente, que respeite a liberdade de consciência, expressão e voto e não use o Evangelho como plataforma para uma ideologia ou um líder político — afirma o deputado. — Os caras têm um império. Não é um debate honesto e fraterno, mas perverso, repleto de desinformação, e que leva o político para glorificar como mito dentro da igreja. Se a esquerda quiser namorar com isso, eu vou ser contra.
O deputado estadual Luiz Fernando Teixeira (PT-SP) diz que “muitos pastores fizeram o papel do diabo, o pai da mentira”, mas seria possível retomar pontes construídas nos primeiros mandatos de Lula.
— Pastores mentiram porque o Lula não fechou a igreja, o Lula não liberou o aborto, o Lula não implementou a ideologia de gênero. Nós temos que usar a nosso favor a palavra de Deus. Quando você lê Salmos, a Bíblia traz muito a luta pelo direito do pobre, do necessitado, do órfão, da viúva.