Mohammed Rajab Mqat não conseguia acreditar que a tripulação do voo de retirada da Faixa de Gaza estava oferecendo a ele um sanduíche inteiro de rosbife — e não um para dividir com seus quatro filhos que viajavam com ele.
— Espere, isso é para cada um de nós? — perguntou o pai palestino de 37 anos, quando cada um recebeu uma bandeja com um sanduíche, frutas, suco de laranja e água. Após quase dois anos de guerra em Gaza, Mqat disse que seu peso havia diminuído de mais de 108 kg para 74 kg.
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— A fome nos massacrou — disse ele, enquanto se dirigiam no mês passado aos Emirados Árabes Unidos para obter tratamento médico para seu filho de 10 anos, que foi ferido em um ataque aéreo em março.
O voo organizado pelos Emirados Árabes Unidos proporcionou uma rota de segurança para 155 palestinos. Seus ferimentos e fome eram uma lembrança visceral do bombardeio israelense contínuo e da crise humanitária cada vez mais profunda em uma guerra que matou dezenas de milhares de pessoas no enclave. É uma situação agravada pela ofensiva terrestre do exército do Estado judaico na cidade de Gaza.
Desde novembro de 2023, logo após o início da guerra, a nação da península arábica operou 27 voos desse tipo a partir do território palestino, transportando 2.904 pacientes e familiares para um complexo governamental em Abu Dhabi, de acordo com o Ministério das Relações Exteriores dos Emirados. As saídas são realizadas em conjunto com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
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Quando questionado sobre por quanto tempo os refugiados poderiam ficar em Abu Dhabi, o governo dos Emirados disse em um comunicado: “Essas famílias devem poder retornar às suas casas assim que o tratamento for concluído” e “quando as condições permitirem que o façam com segurança e dignidade”.
Cerca de 16 mil pessoas em Gaza precisam de retirada médica, segundo uma estimativa da OMS.
À medida que a guerra se prolonga, a demanda cresce, juntamente com os desafios de tratar os doentes e feridos, afirmam autoridades humanitárias e profissionais da área médica.
— Desde o primeiro voo, vimos evidências objetivas de desnutrição: deficiência de ferro em exames de sangue, crianças visivelmente famintas e algumas que corriam para a comida como se nunca tivessem visto antes — disse Maha Barakat, ministra adjunta da Saúde do Ministério das Relações Exteriores dos Emirados Árabes Unidos, em entrevista. — A fome é uma condição médica que pensávamos que o mundo não precisava mais tratar.
Em agosto, um painel de especialistas internacionais relatou que partes de Gaza estavam passando por uma fome “totalmente causada pelo homem”, que, segundo um alto funcionário humanitário das Nações Unidas, foi causada pela “obstrução sistemática” da ajuda por parte de Israel. Israel impôs um bloqueio de março a maio, quando parte da distribuição de ajuda foi retomada sob um sistema muito criticado e apoiado por Israel que contornava as Nações Unidas.
O gabinete do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu chamou o relatório de “uma mentira descarada”.
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Autoridades israelenses afirmaram que deixaram entrar alimentos suficientes em Gaza, mas argumentam que eles são roubados ou que as agências de ajuda humanitária têm dificuldade para distribuí-los adequadamente. As Nações Unidas e outros grupos de ajuda humanitária afirmam que Israel frequentemente nega ou atrasa pedidos para retirar suprimentos que aguardam na fronteira e transportá-los com segurança para Gaza, entre outros desafios.
A OMS afirmou que, para ser selecionado para evacuação, um paciente deve ter sido encaminhado por um médico em Gaza para tratamento que não está disponível localmente. Também afirmou que o Ministério da Saúde de Gaza analisa os casos e, se aprovados, os envia à OMS, que encontra um país anfitrião e obtém autorização das autoridades israelenses para que os pacientes possam sair.
A viagem para Abu Dhabi foi árdua para os retirados em agosto: eles entraram em Israel pela passagem fronteiriça de Kerem Shalom, no sul de Gaza, e foram levados para Eilat, no sul israelense, antes de embarcarem no voo de três horas. O percurso esgotou Asma al-Ladawi, que se sentou no avião segurando a barriga, quase imperceptível mesmo com oito meses de gravidez, com a filha e o filho ao seu lado.
Al-Ladawi disse que uma explosão em dezembro de 2023 atingiu perto de sua barraca em uma escola no norte de Gaza, lançando seu filho, Ahmad, de 12 anos, no ar e quebrando ambas as pernas. Os militares israelenses pediram mais informações sobre a explosão, mas não comentaram imediatamente.
Após o tratamento inicial de Ahmad, sua mãe disse que o levou de um hospital a outro, em busca de cuidados avançados. Mas o sistema médico de Gaza foi devastado pela campanha militar de Israel. Quando foi evacuado, Ahmad não conseguia andar sem ajuda.
O impacto da guerra sobre as crianças em Gaza tem sido imenso.
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O calvário de Iyad al-Masri, 6, começou em abril, quando ele pegou um artefato explosivo não detonado, disse sua mãe, Shireen al-Masri. A explosão resultante incrustou estilhaços em seu abdômen, cortou dois de seus dedos dos pés e dilacerou suas pernas.
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As pernas de Iyad foram fixadas com parafusos, e ele depende de um aparelho de mobilidade com rodas para andar. Um menino inteligente e que costumava ser sociável, Iyad tornou-se introvertido, disse al-Masri. A mãe contou que o pequeno se feriu durante um período de intensa escassez de alimentos. A perspectiva de uma vida nos Emirados Árabes Unidos e um prato cheio de comida parecia um milagre, disse ela.
Durante o voo, Mqat e outros pais disseram que estavam gratos por estarem seguros, mas atormentados pela culpa e pela preocupação com os entes queridos que deixaram para trás. Sua esposa ainda estava presa na paisagem destruída do norte de Gaza, com sua mãe e suas três filhas mais velhas.
— Metade de mim está aqui e metade está lá — disse Mqat, com a voz embargada pelo choro. — Imagine-se no meu lugar.