Desde que surgiu nos palcos, há quase 130 anos, Pai Ubu é um símbolo da tirania. O personagem de “Ubu Rei”, clássico teatral do poeta e dramaturgo Alfred Jarry (1873-1907), toma o poder na marra, multiplica execuções absurdas e governa pelo ridículo e o grotesco, satisfazendo apenas o seu próprio ego de soberano. Usada para ridicularizar políticos autoritários, sua figura profetizou tanto os regimes fascistas do século XX quanto os movimentos extremistas atuais.
A sátira francesa acaba de voltar às livrarias em uma reedição da tradução de 1972 do poeta Ferreira Gullar (1930-2016). O lançamento da José Olympio traz novo projeto gráfico e um prefácio do ator e diretor Cacá Rosset, responsável por popularizar o texto no Brasil nos anos 1980, com o seu Teatro do Ornitorrinco.
— A peça tem a provocação em seu DNA — diz Rosset. — Ela inaugura a vanguarda do século XX, é precursora do surrealismo e do Teatro do Absurdo. Não por acaso, Pai Ubu é um dos personagens que mais inspirou artistas visuais, de Picasso ao dadaísta Marx Ernst.
Nessa paródia de “Macbeth”, Pai Ubu é convencido pela esposa, Mãe Ubu, a matar o rei da Polônia (“Se essa bunda fosse minha, trataria de sentá-la num trono”, diz ela). Uma vez no poder, o regicida trai seus próprios apoiadores, triplica os impostos e massacra a nobreza para reunir fundos. Em seguida, assassina juízes, financistas e opositores em geral. Suas tramoias são desconcertantes, mas também engraçadas e grosseiras. A primeira fala de Ubu, “merdra” (corruptela de “merda”), é repetida como um bordão ao longo do espetáculo, assim como outras tiradas escatológicas.
Jarry era um desconhecido de 23 anos quando a sua peça estreou. Segundo a imprensa francesa da época, a primeira apresentação provocou “protestos tumultuosos”, com parte do público deixando o teatro. Ficou apenas dois dias em cartaz, mas ganhou fama na cena vanguardista. “Com este ‘Ubu Rei’ começa uma nova época”, escreveu o poeta Stéphane Mallarmé. Já o precursor do surrealismo Guillaume Apollinaire descreveu Jarry como “o último dos alucinados”.
A peça chegou ao Brasil em 1969, em uma montagem de Gianni Ratto que alfinetava políticos — e acabou proibida pela censura. Em 1975, renasceu com as experimentações do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone. Foi rebatizada como “UBU, Folias Physicas, Pataphysicas e Musicaes” na versão do Ornitorrinco que contou com figurino da arquiteta Lina Bo Bardi e ficou 27 meses em cartaz, entre 1985 e 1987.
— Nossa montagem se beneficiou desse clima de liberdade da reabertura — diz Rosset. — Respirava-se novos ares após a ditadura militar e ela reverberou essa corda oculta no inconsciente dos espectadores.
O texto continua sendo prestigiada pelas novas gerações. Em cartaz desde 2021, o “Ubu Rei” do coletivo teatral Commune, de São Paulo, provoca o público ao atualizar o texto com elementos contemporâneos. Montada no fim do governo Bolsonaro, que extinguiu o Ministério da Cultura, o espetáculo reflete a tensão constante entre a classe artística e o ex-presidente. No fim, em vez de fugir para a França, Ubu segue para o Brasil, a “terra prometida”, onde o ciclo de corrupção continuará.
Dirigida por Augusto Marino, que também encarna Pai Ubu, e com a veterana Esther Goés no elenco, o espetáculo volta a São Paulo no dia 14 de outubro, após uma turnê pelo Brasil e Portugal.
— A peça tem funcionado muito bem porque reflete o mundo caótico em que vivemos — diz Marino. — Incluímos menções à Lei Rouanet, a ministros do STF… O público morre de rir porque chega numa situação real pela via do absurdo.
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Há 17 anos em cartaz na França, o Ubu da companhia Le Commun des Mortels espelha a era da hiperrealidade. Como guignols humanos, três atores se apresentam em uma bancada que lembra a dos jornais de TV. Ao fundo, uma tela transmite flashes com notícias dos crimes de Ubu. Quando o tirano assume o poder, a transmissão vira pura propaganda política.
— É uma forma de mostrar como a mídia acompanha, ou legitima, o poder — diz Valery Forestier, que dirige a montagem e compõe o elenco. — Nos últimos anos, sentimos a evolução da política para algo cada vez mais grotesco. O crescimento do Rassemblement National (partido da extrema-direita francesa) fez o público a se identificar mais com o que acontece na peça. A realidade está se tornando mais ubuesca do que a própria peça.
Em 2007, quando o Le Commun des Mortels decidiu produzir o espetáculo, Nicholas Sarkozy ainda era presidente da França. A companhia deseja fazer uma reflexão sobre o poder do dinheiro e do financismo no período. O ex-chefe de estado, por sinal, acaba de ser condenado a 5 anos de prisão pela justiça de seu país, por associação ilícita durante sua campanha eleitoral.
— Não podemos dizer que vivemos uma ditadura na França, pelo menos não uma ditadura política — diz Valery Forestier. — Talvez uma ditadura do dinheiro. Porém, quando nos apresentamos na Turquia, era o início da virada autoritária de (Recep Tayyip) Erdogan, e, pela reação do público, sentimos como nunca a contemporaneidade do texto. Agora, temos também um convite para a China. À medida que o capitalismo vai se tornando mais violento, mais o público nos mostra a importância de encenar essa peça.
Para Forestier, Jarry criou a figura arquetípica do tirano: uma espécie de criança boba, grotesca e autoritária. Muitos veem o personagem como uma sátira a Napoleão, mas na verdade o autor se inspirou em Monsieur Hebert, ou Félix-Frédéric Hébert, um professor de física do Liceu de Rennes, que ficou famoso pelo ódio que provocava em seus alunos.
A peça não rompeu com padrões apenas por seu teor político, mas também porque pretendia sacudir a própria linguagem teatral. A primeira montagem provocava o bom gosto vigente com seu cenário quase infantil e vestimentas estilizadas que faziam os atores parecerem marionetes.
Jarry também prenunciou o surrealismo e o Teatro do Absurdo ao difundir e aperfeiçoar o termo “patafísica”. Na definição do autor, é uma ciência das soluções imaginárias, um sistema de pensamento “que desafia a lógica convencional e explora as possibilidades do absurdo e do impossível”.
Com a figura bufônica de Ubu, o dramaturgo francês teria imaginado aquilo que Shakespeare não conseguiu: Falstaff virando rei. Essa atração pelo grotesco não poderia ser mais contemporânea, segundo o ator, poeta e humorista Gregório Duviver, que traduziu o texto de Jarry para uma edição de 2023 publicada pela Ubu Editora. Ele define o fenômeno como a união do kkk (sigla para risada na internet) com o KKK (sigla para o movimento supremacista Ku Klux Klan).
— Tem algo na escatologia das lideranças de extrema-direita que torna Ubu muito atual — diz Duvivier. — O que esses líderes têm em comum, além da orientação política, é uma filiação humorística na tradição dos bufões.
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Ubuesco: Sinônimo de governos violentos, corruptos, gananciosos, mas também infantis, ridículos e escatológicos.
Merdra: Corruptela de “merda”, a primeira palavra da peça escandalizou na estreia e é um símbolo da ruptura estética e política proposta por Jarry.
Cornegidouille: Interjeição criada por Jarry que junta cornes (corno) e gidouille (ventre desmesurado). Representa as três partes do corpo de Ubu — cabeça, coração e estômago. Só a última é desenvolvida.
Bordure: Capitão que ajuda Ubu no golpe contra o rei da Polônia. O nome ressalta que o militar está sempre na borda da traição. A tradução de Ferreira Gullar foi fiel: Bordadura. A de Gregório Duvivier — Bostadura — busca a escatologia.
Pallotins: Os soldados de Pai Ubu. Brincadeira com palatin (paladino) e palot (boçal).