A comissão criada pelo governador do Rio, Cláudio Castro, para reavaliar processos administrativos de agentes de segurança expulsos já autorizou o retorno de 144 policiais civis e militares às corporações. Um levantamento do GLOBO, feito com base na análise de Diários Oficiais e de boletins internos da PM, além de dados obtidos via Lei de Acesso à Informação, identificou um total de 90 PMs e 54 agentes da Polícia Civil fluminense — sete deles delegados — reintegrados desde a criação da comissão, em 2023, até o mês passado. Na lista de beneficiados, há policiais sobre os quais ainda pairam suspeitas de envolvimento com o crime organizado, condenados pela Justiça cujas penas acabaram prescrevendo e até mesmo agentes filmados pedindo propina que foram absolvidos graças a erros processuais.
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Um dos agentes reintegrados é o delegado Álvaro Lins, chefe da Polícia Civil entre 2000 e 2006. Ele foi preso em 2008, sob acusação de favorecer a quadrilha do bicheiro Rogério Andrade em meio à guerra contra seu arquirrival, Fernando Iggnácio. Lins chegou a ser condenado em 2018 pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região a 23 anos de prisão pelos crimes de formação de quadrilha, corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
No entanto, em fevereiro do ano passado, o caso teve uma reviravolta no Supremo Tribunal Federal (STF): o ministro Kassio Nunes Marques reconheceu a incompetência da Justiça Federal para julgar a ação, anulou todas as decisões já tomadas e determinou sua remessa à Justiça Eleitoral — ou seja, o processo voltou à estaca zero.
No último dia 23, o juiz eleitoral Bruno Monteiro Rulière enviou o caso ao Ministério Público Eleitoral, que deve decidir se oferece denúncia ou pede o arquivamento. Com base na decisão de Nunes Marques, Lins solicitou que seu caso fosse reavaliado pela comissão. Em 4 de novembro de 2024, o retorno do delegado à Polícia Civil foi publicado no Diário Oficial, após o deferimento do pedido ser homologado pelo governador.
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Atualmente, Lins está no Departamento de Delegacias do Acervo Cartorário e, em agosto passado, recebeu um salário líquido de R$ 25 mil. No fim do mês que vem, já poderá se aposentar.
— O pedido para minha reintegração foi baseado em dois argumentos: a anulação do processo e o fato de a principal testemunha de acusação, o Maurício Demétrio (ex-delegado preso desde 2021), ser inidônea. Hoje, sabemos de sua conexão com o crime. Agora, quero que o processo siga para que haja a minha absolvição — afirmou Lins ao GLOBO.
A decisão de Nunes Marques também culminou na reintegração de outros agentes que respondiam ao mesmo processo, como o inspetor Jorge Luiz Fernandes, o Jorginho, e o delegado Ricardo Hallak, que teve o retorno à Polícia Civil homologado em fevereiro passado, mais de um ano após sua morte, vítima de um AVC.
Outro agente expulso por conexão com a quadrilha de Rogério Andrade que conseguiu voltar à polícia foi o subtenente Ademir Rodrigues Pinheiro. Em setembro de 2017, quando ainda era sargento, Ademir foi flagrado por câmeras de segurança do Hospital Barra D’Or, na nova Zona Sudoeste do Rio, fazendo a escolta de Andrade. Naquele dia, a mulher do bicheiro havia sido baleada num ataque. Além de Ademir, quem também acompanhava o casal era seu irmão, o subtenente Daniel Rodrigues Pinheiro. Em 2022, com base nas imagens, ambos foram expulsos da PM.
Após a criação da comissão, o agente pediu a reavaliação do seu caso, alegando que não tinha ligação alguma com Andrade. Desde maio, ele está de volta à PM, foi promovido a subtenente e bate ponto no 4º BPM (São Cristóvão).
O nome de Ademir, porém, é mencionado na denúncia que baseou a Operação Calígula, deflagrada pelo Ministério Público do Rio (MPRJ) contra a quadrilha de Andrade em 2022. A investigação revelou que seu irmão, Daniel Pinheiro, trabalhava para o bicheiro há mais de 20 anos.
No entanto, por um breve período, segundo o MPRJ, Daniel “teria sido temporariamente desligado da função em razão do seu irmão Ademir ter causado um prejuízo financeiro à organização criminosa”. Ao final da investigação, Ademir não foi denunciado à Justiça. Daniel virou réu junto com Andrade e segue fora da PM.
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A Comissão Mista de Revisão Administrativa foi instituída por decreto do governador em janeiro de 2023, como resposta a um pleito de ex-policiais, associações de classe e da “bancada da bala” da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Para ter seu pedido de revisão concedido na comissão, o interessado precisa comprovar a ocorrência de fato novo no processo judicial ou administrativo ao longo dos últimos dez anos.
O postulante também deve renunciar aos salários referentes ao período em que esteve afastado. O órgão, formado por representantes das polícias, apenas emite um parecer, que deve ser homologado pelo governador.
Na maior parte dos casos analisados, antes de recorrer à comissão, os agentes já haviam tentado ser reintegrados sem sucesso pela via judicial ou pela administrativa. É o caso do cabo Rogério Alves de Carvalho, excluído da PM em 2009, um ano depois de ser preso em flagrante na cozinha da casa do então deputado estadual Natalino Guimarães, condenado por chefiar a maior milícia do Rio. Na ocasião, Natalino também foi preso, numa operação da Polícia Civil que apreendeu várias armas no local, apontado como QG do grupo paramilitar.
No entanto, Carvalho foi absolvido no processo que respondia por associação criminosa e resistência, pois, apesar de o agente ter sido encontrado armado na casa do miliciano, não ficou provado que ele “integrasse de forma estável e permanente a organização criminosa”. Ao longo dos últimos 16 anos, ele apresentou pelo menos seis recursos administrativos à PM para ser reintegrado — todos foram indeferidos.
Carvalho também entrou com uma ação judicial pedindo a anulação de sua expulsão, que foi negada em duas instâncias diferentes. A comissão e o governador aceitaram os argumentos de Carvalho, que voltou à corporação em janeiro e, desde então, está lotado no Batalhão de Policiamento de Vias Expressas (BPVE).
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Já a delegada Evanora Gomes de Moraes foi reintegrada mesmo após ter sido condenada por participar, em 2004, da sessão de espancamento de um jovem que pretendia denunciar bicheiros que atuavam no Centro do Rio. Em primeira instância, ela recebeu pena de quatro anos de prisão por tortura. Mas, em grau de recurso, a 7ª Câmara Criminal desclassificou o crime para lesão corporal leve — a pena caiu para um ano de detenção, e a acusação acabou prescrevendo. Com base nessa decisão, o pedido de retorno foi aceito em dezembro do ano passado e, desde então, a delegada está lotada na 43ª DP (Guaratiba).
Procurada, a Secretaria da Casa Civil informou que a comissão recebeu aproximadamente 1.800 requerimentos. Desse total, 150 foram deferidos (cerca de 8%). “Estes números evidenciam o critério técnico e jurídico adotado, refletindo o compromisso da comissão com a legalidade e a proteção do interesse público”, diz a pasta. A PM afirmou que “os policiais citados na matéria exercem funções administrativas, encontrando-se em processo de readaptação ao serviço policial”. A Polícia Civil limitou-se a dizer que “cumpre as decisões da comissão”.
O advogado Adriano Couto, defensor do PM Ademir Pinheiro, declarou que a exclusão de seu cliente foi “contrária às provas dos autos” e que o retorno à corporação “era questão da mais lídima justiça”. Já Mariana Hallak, que representa a delegada Evanora de Moraes, sustentou que a acusação “foi desclassificada para lesão corporal leve, de pequeno potencial ofensivo, o que demonstrou a desproporcionalidade da pena de demissão”.