É noite no campus da Universidade de Yale, e uma professora de filosofia e seu marido psiquiatra recebem em casa um pequeno grupo de alunos colegas de departamento para um convescote informal. E, porque são acadêmicos, intelectuais em estado de graça, a todo momento citam filósofos vivos e mortos para falar de coisas como “a existência percebida de uma moralidade coletiva” ou o “descontentamento performativo”.
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As acaloradas e maçantes discussões eruditas do preâmbulo de “Depois da caçada” — que é exibido nesta quinta-feira (2) na sessão para convidados que abre o Festival do Rio, na sexta-feira para o público no Cine Odeon e estreia em circuito semana que vem — são alimentadas por taças de vinho, trechos de óperas, canções de jazz e de bossa nova brasileira. De certa forma, é como se o italiano Luca Guadagnino, premiado diretor autor de “Me chame pelo seu nome” (2017), estivesse associando músicas como “Lígia”, de Tom Jobim, e “É preciso perdoar”, na voz de Caetano Veloso, a um ambiente de gente esnobe.
— Não acho que os gêneros de música em questão demonstrem necessariamente qualquer tipo de superioridade intelectual da academia — desconversa Guadagnino em entrevista ao GLOBO num salão de um hotel de luxo durante o Festival de Veneza, onde “Depois da caçada” foi exibido fora de competição. — Não vejo nada de pretensioso na bossa nova ou naquele momento modernista brasileiro. Eu diria o oposto, até. Eu teria dificuldade em escolher uma música para um filme usando-a como um indicador de qualquer tipo de valor.
A requintada trilha sonora do longa serve de pano de fundo para discussões nobres e atuais. Na trama, Julia Roberts interpreta Alma Olsson, a professora que tem as vidas privada e profissional abaladas quando uma das alunas sob sua tutela (Ayo Edebiri) acusa um dos professores (Andrew Garfield) de assédio sexual. O roteiro da novata Nora Garrett traz para o círculo acadêmico questões delicadas, como a cultura do cancelamento, o movimento #MeToo e identidade de gênero — mas sempre a partir dos privilégios da classe.
— A história criada originalmente por Nora aprofundou ideias que eu já vinha maturando comigo mesmo envolvendo poder, por que o queremos e por que lutamos por ele e queremos tirá-lo dos outros — explica o cineasta, que oferece mais observações a seguir:
“A ideia de que quero deixar alguém desconfortável é estranha para mim. Nunca faria algo deliberadamente que deixasse as pessoas desconfortáveis com qualquer personagem. Não me sinto ligado a nenhum deles. Sou muito curioso em relação ao outro. Minha curiosidade é tão verdadeira, sincera e profunda como um modo de ser. As pessoas se sentem desconfortáveis pelos motivos errados. Elas não deveriam ser tão suscetíveis. Mas é outro tipo de conversa. Não acho que todos os meus filmes deixem as pessoas desconfortáveis. Alguns podem deixar, mas alguns são mais languidamente doces. ‘Depois da caçada’ conta uma história sobre choque de verdades, um choque de subjetividades, e uma busca por poder. A busca pelo bode expiatório do outro. De fato, este é um esforço brutal. E nós o encaramos. Espero que com honestidade.”
“Pegamos ‘É preciso perdoar’ (de Carlos Coqueijo e Alcyvando Luz) e usamos quatro ou cinco vezes, acho que em quatro ou cinco encarnações diferentes. Eventualmente, a última versão que você ouve no filme é a da banda Ambicious Lovers, porque esse standard, esse clássico conhecido como ‘É preciso perdoar’ intervém com um ritmo lânguido que, de alguma forma, nos remete às ondas do ritmo de vida desse personagem. Mas, ao mesmo tempo, a letra é muito cristalina, assim como o próprio título. E eu achei que estava muito em sintonia com a história deste filme.”
“A música vai muito além do nível de significado que pode ter num determinado momento de nossas vidas. E ela lida com ritmo e com o não dito. Isso adiciona uma camada à história, ou é um personagem que se junta aos outros interpretados pelos atores. Claro, às vezes a música é usada por mim ou por outros realizadores para criar ou enfatizar um contexto. No caso de ‘Depois da caçada’, a playlist que você ouve parte principalmente do amor por gêneros musicais clássicos do personagem Frederick, interpretado por Michael Stuhlbarg, o marido de Alma (Julia Roberts), que tem esse tipo de gosto impecável.”
“Tudo começa com o ótimo roteiro que a Nora Garrett me entregou. Gosto da ideia do particular que de alguma forma se torna universal. O microcosmo do ensino superior e dos campi americanos me pareceram uma infraestrutura muito poderosa, e ela foi sagaz em usá-lo como um teatro para dinâmicas de poder que podem ser encontradas em muitos outros ambientes. Havia algo muito cinematográfico nisso. Trabalhamos duro juntos o rascunho de roteiro que ela havia desenvolvido, porque percebi que precisávamos criar muito mais ambiguidade, e tivemos de aprofundar o nível de subjetividade dos personagens, em vez de oferecer uma visão mais objetiva deles. Em cinema, particularmente no cinema de autor, existe essa falsa ideia de que o diretor tem que ser o autor do roteiro para o projeto ser considerado autoral. Eu discordo. Todos os filmes de Hitchcock e de Howard Hawks que amo não foram escritos por eles, e não conheço diretores mais autorais do que Hitchcock e Hawks.”
“Quando recebi e li o roteiro, enviado pelo meu agente, ele me ligou e disse: ‘Demos o roteiro também para Julia Roberts’. Fizeram o mesmo com ela: ‘Demos o roteiro da Nora Garrett para Luca Guadagnino’ (risos). No dia seguinte encontrei Julia numa festa e ficamos conversando muito, e ficou evidente que éramos como amigos que se conheciam há muito tempo. Não era para ser um projeto de longa gestação. Assim que ele foi aprovado, e com Julia como protagonista, começamos a produzi-lo.”
“Com frequência me chamam de prolífico e fico intrigado com isso. Acham o mesmo do grande Yorgos Lanthimos, que fez seis filmes nos últimos cinco anos? Ou de Wes Anderson, outro diretor que admiro, que faz um filme atrás do outro? Todos nós trabalhamos muito e gostamos de trabalhar. Somos artistas que temos o grande privilégio e a honra de receber os meios para nos expressarmos no ritmo que quisermos. Quem decide qual é o ritmo? Isso é algo que não é de forma alguma predeterminado. Fassbinder teve uma breve carreira de 12 ou 13 anos antes de morrer, e deixou cerca de 50 filmes e séries para a TV; no mesmo intervalo de tempo, talvez Kubrick tenha feito apenas dois. Por mais que eu não tente ver algo estranho na produção cinematográfica rarefeita de alguém como Kubrick, não vejo muita vantagem em fazer um filme por ano. Se você tem a capacidade intelectual, emocional e prática para fazer isso, boas histórias para contar, ótimos atores com quem trabalhar, estúdios incríveis para se sustentar e consegue fazer as coisas direito, por que não? E, mais uma vez, não estou sozinho nisso”