No terço final de “O desabamento”, Édouard Louis conta que organizou um jantar com a irmã e o irmão mais velho, logo antes de publicar seu primeiro romance. Sabendo que a família iria odiar o modo com que fora retratada no livro, o escritor vê esse jantar como uma despedida. Seria a última vez que se veriam (ele e o irmão mais velho), antes da morte do irmão por alcoolismo, nove anos depois. “Eu lhe fiz perguntas sobre ele e sobre sua vida. Tentei, com a ajuda dele, recordar nossas raras lembranças comuns de infância, mas a verdade é que me entediei. (…) Esperava uma cena de adeus memorável, mas o tédio foi o único sentimento que emergiu dessa noite, a única emoção que meu irmão despertou em mim.”
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O leitor do novo romance pode sentir esse tédio reverberar pelos capítulos do livro. Desde o início, parece que Louis escreveu a contragosto, e sem aquela eletricidade e complexidade que marcaram sua “antropologia da fuga”. Aqui o autor parece patinar sem sair do lugar, e tenta a todo momento justificar e argumentar que não sentiu nada ao saber que o irmão havia morrido.
A própria estruturação dos capítulos também segue esse tom de lógica da causalidade: “Fato número 1”, “Fato número 2”, “Fato número 3”, que mostrariam uma sequência de derrotas insuperáveis pelas quais o irmão alcoólatra passou até a derrocada final. Porém, as cenas exemplares não conseguem atingir o grau da dramaticidade dos trabalhos anteriores do autor, por exemplo, no ótimo díptico “Quem matou meu pai” e “Luta e metamorfoses de uma mulher”, onde episódios de violência e agressão dos familiares são intercalados com breves lances de afeto e ternura.
Além disso, se nos livros anteriores a voz confessional ganha força pelo tom de denúncia das violências de classe, ou seja, um testemunho de um sobrevivente, aqui a questão se coloca mais como um relatório burocrático de um vilão desinteressante.
As cenas de humilhação pelo pai, quando o rapaz tenta arranjar um emprego num açougue ou numa empresa de restauração de prédios históricos, estão entre os pontos fortes do livro. Fazem o leitor ter empatia com a personagem. Ou quando ele começa um relacionamento com uma mulher mais rica, amiga da família, e insinua uma guinada, para depois cair novamente.
Quando as cenas de ternura vêm, por exemplo, no momento em que o irmão ajuda Louis a pintar o apartamento, podemos ver que até pessoas ruins têm seus lampejos de bondade. E é esse tipo de complexidade que se espera de um texto literário. Mostrar a beleza na feiura e arrancar o horror da beleza. Neste livro, infelizmente, falta esse tipo de equilíbrio. Nem uma coisa nem outra ganham um bom contorno.
Louis parece buscar a confirmação de uma racionalidade no comportamento irracional e autodestrutivo do irmão. A espiral de sofrimento seria explicada por uma espécie de ferida emocional, uma “Ferida lançada no mundo e sempre reaberta”, “a vida do meu irmão foi um instrumento a serviço da Ferida”, talvez provocada pela ausência do pai e ou pela própria incapacidade de lidar com as derrotas. Assim, o irmão, que vivia a vida da qual Édouard teria escapado, estava preso porque não tinha “as tecnologias da fuga”. Restaria ao irmão organizar a narrativa da própria vida ao redor de dois elementos: o ódio e o sofrimento. “A tristeza juntava os pedaços e criava para ele a possibilidade de uma narrativa.” “Meu irmão era tão despossuído de tudo, de dinheiro, de seus sonhos, de felicidade, que esse discurso de ódio era (…) tudo que ele tinha. (…) lhe dava um sentido, uma consistência no mundo”. Infelizmente, o retrato do irmão construído ao longo do livro é muito pálido, unidimensional e sem vivacidade. Quando tenta concluir o livro dizendo que não sabe nada sobre o irmão, já é tarde demais.
* Marcos Vinícius Almeida é mestre em Literatura e Crítica Literária