À medida que a lenta devolução dos restos mortais de reféns israelenses cria um impasse para a continuidade do avanço das negociações de paz entre Israel e Hamas, o grupo palestino aproveita o cessar-fogo garantido pela primeira fase do acordo para reimpor controle territorial sobre a Faixa de Gaza, há dois anos mergulhada no caos da guerra. Forças do Hamas entraram em confronto com grupos armados rivais em diferentes partes do enclave palestino desde a assinatura do acordo, e execuções públicas foram gravadas em vídeo e espalhadas nas redes sociais — em uma disputa de poder que divide a população quanto à volta da presença de uma forma de autoridade ao cotidiano.
O Hamas anunciou uma operação para reocupar as zonas de onde o Exército israelense se retirou logo após a assinatura da primeira fase do acordo de paz na semana passada. Sob argumento de garantir a ordem e restaurar a lei, o grupo palestino, no poder do enclave desde 2007, anunciou uma mobilização de 7 mil homens. Combatentes das Brigadas Izzedine al-Qassam, seu braço armado, foram vistos controlando a multidão durante a entrega dos reféns na segunda-feira, enquanto a polícia do território retomou patrulhas nas ruas das cidades, com agentes usando máscaras pretas e portando armas de assalto.
Uma fonte de segurança palestina em Gaza declarou à AFP que o corpo de segurança do Hamas — uma unidade recém-criada cujo nome se traduz como Força de Dissuasão, estava realizando “operações de campo para garantir segurança e estabilidade”. Desde o início da operação, embates foram registrados entre o Hamas e outras facções palestinas.
Um confronto aconteceu nesta terça-feira no distrito de Shejaiya, no leste da Cidade de Gaza — mesma região em que militares israelenses admitiram ter aberto fogo após homens armados se aproximarem do perímetro de segurança para o qual as tropas recuaram. Não está claro se a ação do Exército, que segue ocupando 53% do território palestino, configura apoio a alguma das facções envolvidas. Ao menos quatro pessoas morreram, segundo fontes palestinas.
A rotina de enfrentamentos se repetiu nos últimos dias. Durante o fim de semana, homens do Hamas e do clã Dughmush, uma poderosa organização familiar, envolveram-se em uma escaramuça que deixou mais de 20 mortos. Imagens gravadas na maior cidade do enclave, reproduzidas por meios oficiais do Hamas e nas redes sociais, mostraram execuções realizadas por homens encapuzados em praça pública, diante de dezenas de pessoas. A rede de TV al-Aqsa informou que os mortos em uma dessas rodadas de execução seriam criminosos e suspeitos de espionar para Israel.
Refregas entre o Hamas e outros grupos políticos — e frequentemente armados — são uma constante que de tempos em tempos se repete em Gaza. Quando o grupo chegou ao poder em 2007, expulsou o Fatah do enclave, em um processo que se tornou violento, com a morte de cerca de 120 pessoas, segundo estimativas do Comitê Internacional da Cruz Vermelha.
Outros grupos armados convivem com o Hamas no território palestino, incluindo a Jihad Islâmica, uma organização que colaborou para o atentado terrorista de 7 de outubro de 2023 contra Israel, até clãs familiares que receberam ajuda de Tel Aviv para confrontar as tropas do Hamas. Em junho deste ano, o governo israelense admitiu estar armando clãs opositores do Hamas em Gaza, com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu chegando a gravar um vídeo em que defendeu a ação e questionou “qual o problema com isso?”.
O grupo acusado de receber ajuda em Gaza é conhecido como Força Popular, liderada por Yasser Abu Shabab, um palestino beduíno de cerca de 34 anos. Há confirmação de que o grupo atuou no leste de Rafah, no sul da Faixa de Gaza, próximo à fronteira com Israel e com o Egito ao longo da guerra.
Embora seja apresentada pelo Hamas como uma operação de combate ao crime, motivada pelo caos social instaurado após o começo da guerra em Gaza e invasão do Exército de Israel, que rompeu com a já frágil organização institucional do enclave, moradores estão divididos quanto aos meios e à força empregada pelo grupo palestino para reaver o controle.
— Por que as pessoas estão comemorando o caos? Um homem mascarado mata outro homem mascarado sem nenhuma prova, sem investigação, sem um tribunal, sem sequer um período de espera para apelação: como chamamos isso? Resistência? Não, isso é ilegalidade — disse o advogado Mumen al-Natoor, morador de Gaza, em entrevista à rede britânica BBC. — Aqueles que matam sem lei são criminosos. Nós os responsabilizaremos. Somos testemunhas do capítulo mais sombrio da nossa história.
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O ativista Ibrahim Faris, ativista que mora na região central da Faixa de Gaza, comparou os conflitos internos a um “pecado”.
— Não se pode corrigir um erro com outro — disse. — Execuções sem julgamento justo são um crime.
Em outras regiões do enclave, a chegada dos homens do Hamas foi vista como positiva, e apontada como um sinal de volta à normalidade, após dois anos de deslocamentos forçados e da profunda crise que colapsou até mesmo as relações econômicas mais simples, incluindo o comércio de alimentos.
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— Começamos a nos sentir seguros — afirmou Abu Fadi al Banna, de 34 anos, em Deir al-Balah, no centro de Gaza. — Começaram a organizar o trânsito e a desobstruir os mercados. Nos sentimos protegidos dos delinquentes e dos ladrões.
Hamdiya Shammiya, de 40 anos, que devido aos combates teve que se deslocar do norte para a cidade Khan Yunis, no sul, concordou.
— Nossas vidas precisam agora de paciência, ordem e da segurança que a polícia começou a restabelecer. Já notamos uma pequena melhora — disse.
Para Hanya, uma palestina que está hospedada na cidade de Deir al-Balah, a constatação de momento é de que há um vácuo de poder no enclave palestino, após os anos de conflito e a perspectiva de um desarmamento do Hamas — embora o grupo rejeite a proposição, que é exigência de Israel para o fim da guerra e está no plano de 20 pontos do presidente americano, Donald Trump.
— O cessar-fogo não resolve tudo magicamente. É apenas o primeiro de muitos passos para a recuperação — disse a palestina ao programa World at One, da BBC Radio 4. — Não quero que o Hamas assuma o controle, mas precisamos de um Estado de Direito, precisamos de alguém que assuma o poder. Um vácuo seria uma proposta pior do que o Hamas.
O plano de Trump para Gaza prevê o estabelecimento de um governo palestino tecnocrático, apoiado por uma iniciativa internacional, que o próprio presidente americano presidiria. Também aponta que uma Força de Estabilização Internacional, com militares de diversos países, incluindo de parceiros árabes, entraria no enclave para garantir a segurança e para treinar forças palestinas. Contudo, não há um cronograma definido para estas ações, e nem a certeza de que as negociações irão progredir. (Com AFP)