Israel impôs restrições à ajuda humanitária destinada à Faixa de Gaza como retaliação ao Hamas por “não ter cumprido a sua parte no tratado” de entregar todos os corpos de reféns mortos no enclave, conforme exigido pelo acordo de cessar-fogo. A sanção, porém, esbarra no estado de devastação de Gaza que transforma a operação de busca em um “enorme desafio” logístico, como classificou Christian Cardon, porta-voz do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Soma-se a isso a falta de equipamentos destinados a este tipo de operação. Em agosto, por exemplo, o instituto de pesquisa da ONU estimou que o volume de resíduos de construção devastadas em Gaza é equivalente a 14 vezes os escombros gerados por todos os conflitos armados no mundo desde 2008.
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Apesar de o Hamas já ter sinalizado previamente que enfrentaria dificuldades para cumprir a exigência do acordo — que também reconhece os obstáculos na busca pelos corpos —, o Exército israelense anunciou nesta terça-feira que mais quatro corpos de reféns retidos por militantes no território foram recolhidos pelo CICV, ficando ainda outros 20 em Gaza. A operação ocorre após Israel decidir não reabrir a passagem de Rafah, na fronteira com o Egito — ponto previsto no cessar-fogo —, condicionando a medida à devolução completa dos restos mortais.
O acordo estipula que para cada corpo entregue pelo Hamas, Israel liberta 15 prisioneiros palestinos mortos. Em cumprimento, Israel liberou 45 corpos ao Hospital Nasser, em Khan Younis — mas, segundo Mohammed Zaqot, um funcionário da unidade ouvido pelo The New York Times (NYT), os corpos “vieram sem identificação, apenas numerados”.
Autoridades israelenses sustentam que o Hamas possui informações sobre os corpos, mas não todos. O grupo, por sua vez, admite que não possui localização precisa de todos os corpos escondidos durante a guerra. Negociadores afirmaram, inclusive, que Israel tinham ciência dessa limitação ao assinar o pacto — um descompasso que ameaça fragilizar a trégua.
Para recuperar os corpos, de acordo com autoridades ouvidas pelo NYT, o Hamas precisará dialogar com outras facções, remover escombros e examinar túneis destruídos. Sob condição de anonimato, três autoridades israelenses disseram que o acordo prevê a criação de uma força-tarefa conjunta, incluindo os EUA e outros mediadores, para compartilhar informações e ajudar a encontrar os restos mortais. A busca, ainda segundo o porta-voz do CICV pode levar “dias ou semanas” — ou que alguns corpos jamais sejam encontrados.
“As equipes do CICV estão tomando medidas para garantir que os mortos sejam tratados com respeito, incluindo providenciar sacos mortuários, veículos refrigerados e o envio de pessoal adicional para facilitar esse processo”, informou o CIVC em comunicado, divulgado nesta terça.
Para o especialista forense Sami Jundi, ex-perito do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos, o quadro complica-se ainda mais quando se trata dos escombros de Gaza.
— Os reféns foram mantidos em túneis, que ficam abaixo de edificações, a maioria bombardeada por Israel. E o Hamas dividiu os reféns vivos e mortos, como tática de guerrilha para não permitir que todos fossem resgatados ou mortos de uma vez só — afirmou Jundi em entrevista ao GLOBO. — A partir daí, eu vejo dois processos: um sobre a efetiva documentação da localização dos corpos e outro sobre a busca ativa, quando não há documentação.
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O especialista ainda acrescentou que a destruição em Gaza amplia os desafios não só logísticos, mas humanos da operação.
— Na busca ativa, se os corpos estiverem mapeados, os escombros se tornam apenas obstáculos. Se não mapeados, os escombros, além de serem obstáculos, se tornam motivos de trabalho árduo e a possibilidade de ter sido em vão — explica o especialista, acrescentando que “a procura pelos corpos precisa fazer parte do esforço internacional”. — A busca é feita por pessoas desnutridas, que retiram toneladas de escombros manualmente, pois em Gaza não há maquinário. Beira o impossível.
Antes da guerra, Gaza já era densamente urbanizada. Em dois anos de confrontos, foi transformada em um terreno de escombros. De acordo com um mapeamento feito por Adi Ben-Nun, diretor do Centro de Sistemas de Informação Geográfica da Universidade Hebraica, encomendado pelo Haaretz em julho, cerca de 160 mil construções – cerca de 70% de todas as estruturas do enclave – sofreram danos severos (pelo menos 25% estão totalmente destruídos), tornando-as inabitáveis.
A ONU estima que o peso dos entulhos de construção em Gaza totaliza cerca de 50 milhões de toneladas — aproximadamente 137 quilos de entulho por metro quadrado no enclave. A previsão é de que levaria 21 anos, com investimento de US$ 1,2 bilhão (mais de R$ 6 bilhões), para limpar a Faixa de Gaza.
Para as famílias que não receberam os restos mortais de seus entes queridos na última segunda-feira, foi um final amargo para um dia que, de certa forma, seria alegre pela libertação dos últimos 20 reféns vivos de Gaza.
Nesta terça-feira, o Fórum de Reféns e Famílias Desaparecidas endereçou uma carta ao enviado especial dos EUA ao Oriente Médio, Steve Witkoff, expressando sua preocupação com o retorno dos reféns falecidos. “O que temíamos está acontecendo diante dos nossos olhos”, afirmou o fórum. E, na sequência, eles instaram o enviado a “fazer tudo o que estiver ao seu alcance e a exigir que o Hamas cumpra sua parte do acordo e traga todos os reféns [mortos] restantes para casa”.
O fórum também anunciou que realizará uma reunião de emergência devido à “violação do acordo assinado e aos temores de que os 25 reféns em cativeiro sejam sacrificados”, apelando a Israel e aos mediadores para que suspendam a implementação do cessar-fogo.
O presidente dos EUA, Donald Trump, também criticou o Hamas na terça-feira, dizendo que “o trabalho não está concluído”. “Os mortos não foram devolvidos, como prometido”, escreveu Trump em sua plataforma Truth Social.
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Em um discurso recente, o ministro da Defesa de Israel, Israel Katz, disse que qualquer atraso deliberado na entrega será considerado “violação flagrante do acordo” e respondido.
Do lado palestino, equipes designadas pelo Egito — uma das nações mediadoras do armistício, ao lado da Turquia e do Catar, além dos EUA — dentro de Gaza trabalham para achar os corpos dos israelenses, segundo reportagem do canal de notícias al-Araby, do Catar.