- Ouça o ‘Caso zero’: Podcast está disponível nas principais plataformas de áudio
- Produção do ‘Caso zero’: Apuração levou dois anos e traz novos detalhes e entrevistas inéditas
“Caso zero” também pode ser ouvido nas principais plataformas de áudio, como Apple e Spotify.
André Borges: Caso Zero é uma série de podcast em cinco episódios. Esse é o segundo episódio da série. Se você ainda não escutou o primeiro, a gente recomenda que você pause aqui e escute antes o episódio anterior.
Sonora de Paulo Pavesi: Olha o sistema que eu tô vendo. O sistema é podre, os caras não vão beneficiar quem precisa. Eles estão defendendo tudo isso porque eles são traficantes, eles vendem órgãos, eles matam pessoas em UTI. Essa é a realidade.
Bela Megale: Paulo Pavesi e sua esposa Rosângela perderam o filho Paulinho após um acidente no dia 19 de abril de 2000. Os órgãos do menino foram doados e Paveze homenageou os médicos Álvaro Inhanez, José Luiz Gomes e José Luiz Bonfitto com uma placa de prata, em agradecimento pelos cuidados com o menino. O texto escrito na placa dizia que — abre aspas — “no momento mais difícil de nossas vidas, seu gesto humano e profissional nos deu segurança e conforto para seguirmos em frente” — fecha aspas. Mas, em pouco tempo, Pavesi passaria a acusar esses mesmos médicos de terem matado seu filho.
Bela Megale: Eu sou Bela Megale.
André Borges: E eu sou André Borges.
Bela Megale: E esse é o “Caso zero”: a história que mudou o rumo do transplante de órgãos no Brasil. Um podcast do jornal O GLOBO. Segundo episódio: A acusação.
André Borges: Uma das fontes que a gente usou para fazer a apuração foi o livro que o Paulo Pavesi escreveu sobre o caso. Ele se chama “Tráfico de órgãos no Brasil: O que a máfia não quer que você saiba”. Nesse livro, o Pavesi narra toda a sua jornada atrás do que ele considera ser a justiça — e que ele vem repetindo ao longo desses últimos anos, em entrevistas, podcasts, lives e em depoimentos para a Justiça. Uma parte importante da nossa apuração partiu dos relatos do próprio Pavesi , mas não só disso: nosso fio condutor também passa por centenas de documentos, denúncias de procuradores, dezenas de entrevistas com os envolvidos e milhares de páginas de processos judiciais. É uma forma de tentar olhar o caso sem um envolvimento emocional. A gente sabe que revisitar a história de uma criança que morreu aos dez anos de idade em um acidente trágico toca qualquer pessoa. O nosso esforço aqui é entender a amplitude do que aconteceu com distanciamento, fazendo a nossa própria apuração.
Bela Megale: Paulo Pavesi conta que, alguns dias depois da morte do filho, ele voltou ao Hospital Pedro Sanches para pagar a conta da internação. Relembrando: o Pedro Sanches foi o primeiro hospital para onde o Paulinho foi levado depois do acidente, aquele que ficava perto da sua casa. O Pedro Sanches era uma clínica particular. Ele era até cadastrado pelo SUS, mas a maior parte dos seus serviços era por atendimento privado. Paulinho foi internado como paciente particular e, depois de sua morte, os pais ainda tinham uma conta para pagar.
André Borges: Paulo Pavesi diz que, quando ele chegou no hospital, Pedro Sanches entregou uma conta da internação, e ele ficou assustado com o valor. A conta era de R$ 11.668,02. Se a gente atualizar esse valor para 2025, seria o equivalente a mais de R$ 51.000. O Pavesi tinha acabado de perder o filho e, agora, tinha que lidar com uma conta hospitalar altíssima, que precisava ser paga naquele instante.
Bela Megale: Porque, segundo ele relata, naquele momento o hospital o obrigou a pagar a conta. Caso contrário, o cheque caução que uma amiga da família emitiu ia ser descontado. Por isso, Paulo Pavesi substitui o cheque da vizinha por um cheque seu, da sua empresa, no valor total da conta do hospital.
André Borges: Tudo estava prestes a mudar radicalmente. Assim que Pavesi deixou o hospital e chegou em sua casa, ele começou a analisar a conta. Queria entender por que o valor era tão alto. E foi ali que teve início a saga do pai contra os médicos envolvidos com o atendimento de seu filho. Eu vou ler aqui o relato que o Paulo Pavesi faz desse momento em seu livro — abre aspas: “Nossa situação financeira ainda não havia se estabilizado totalmente. Havíamos passado por momentos difíceis e estávamos nos recuperando pouco a pouco. Eu precisaria achar alguma alternativa para fazer aquele pagamento, mas precisava de tempo. Rosângela, ao saber do débito, ficou muito preocupada. Verificando os detalhes da conta superficialmente, surgiram algumas dúvidas. Coloquei a conta na mesa da sala, puxei uma cadeira e me debrucei para entender o que havia sido cobrado. Havia um resumo e também uma ficha das requisições diárias de materiais e medicamentos referentes àqueles três dias de internação. As dúvidas foram se transformando em desconfiança.” Fecha aspas.
Bela Megale: Pavesi estava certo. A conta hospitalar tinha mesmo algumas cobranças que não podiam ter sido feitas a partir do momento em que a família assinou termo de intenção de doação dos órgãos. Todos os procedimentos dali em diante têm que ser pagos pelo SUS. Esses custos não podem ser repassados para a família do doador. É a lei. A doação dos órgãos do Paulinho foi autorizada na manhã do segundo dia de internação. Nada do que foi feito depois disso poderia ter sido cobrado dos seus pais.
André Borges: É isso: a cobrança tinha erros. Mas a questão é como uma acusação de superfaturamento se transformou em uma denúncia de homicídio. O Pavesi conta no seu livro que voltou ao Pedro Sanches quando percebeu as irregularidades. Ele foi reclamar a cobrança e disse que foi mal recebido pelo setor de contabilidade do hospital. O hospital não concordou com as suas contestações. O Pavesi conta que o administrativo do Pedro Sanches chegou até a acusá-lo de criar uma situação hipotética só para se livrar da dívida. “Uma vez pedi uma reunião com o administrador do hospital, que na época era um médico, Lucas Neto Barbosa. Ele disse que o doutor Lucas nunca o atendeu.”
Bela Megale: Oi, a gente vai falar com o Doutor Lucas Barbosa.
Bela Megale: Quando a gente foi para Poços de Caldas, procuramos o Dr. Lucas Neto Barbosa. O Dr. Lucas recebeu a gente no seu escritório, que, por coincidência, fica no prédio ao lado do edifício onde aconteceu o acidente.
Dr. Lucas Neto Barbosa: E, a esse respeito, de não cobrar: quando há casos de doação de órgãos… Eu não sabia. A Rosa também não. Muito menos, tenho certeza. Eu acho que caberia alguém dessa Central de Transplantes (…). Assim, a regra seria isso daí. Certamente, se já existia essa norma na época, ela foi deixada para trás e que foi cobrada.
André Borges: O que o Dr. Lucas Neto Barbosa conta é que, na época, ele não sabia que era para ter repassado pro SUS as cobranças dos procedimentos ligados à doação. Ninguém no Pedro Sanches sabia. Foi por isso que cobrou da família.
Dr. Lucas Neto Barbosa: Agora, tirando esse fato, o que pode ter sido cobrado irregular, eu acho que… Essa diária, porque isso é norma em todo lugar. Hotel, hospital, diária: passou da hora tem que pagar. Aí cabe você chorar e discutir. Aí tem gente que deixa no hotel, põe a mala no saguão. Mas você passou da hora tem que pagar. Então pode ter sido bom dizer: “dura essa cobrança”, mas ela não foi irregular.
Bela Megale: Diante disso, Paulo Pavesi decidiu que não ia pagar a conta do Pedro Sanches. Assim que ele saiu do hospital, foi ao banco e sustou o cheque que tinha emitido. Ele cancelou o pagamento. Pavesi disse que só acertaria a conta quando o hospital aceitasse rever as cobranças.
André Borges: E o hospital também contou sua versão da história. Um tempo depois, quando o caso saiu na imprensa, o Pedro Sanches se pronunciou. Foi emitido um comunicado dizendo que — abre aspas — “Cabe esclarecer que a direção do Hospital Pedro Sanches Sanches tentou todos os acordos possíveis com os pais durante mais de quatro meses, visto que o cheque caução apresentado na internação foi substituído por um cheque de empresa e posteriormente sustado pelo emitente, o próprio pai do garoto. E que somente após tentar de todas as maneiras um acordo, é que foram tomadas as medidas legais desta pendência.” Fecha aspas.
Bela Megale: Medida legal tomada pela administração do Hospital Pedro Sanches foi o pedido de falência da empresa do Paulo Pavesi . Aquele cheque emitido para pagar a conta da internação e que logo depois foi sustado era da empresa dele — era a empresa do Pavesi que estava em dívida com o hospital.
André Borges: E depois do pedido da falência, o Pavesi reagiu. Eu vou citar mais um trecho do livro dele — abre aspas: “Pela internet, tentei localizar algum meio de contato com o Ministério da Saúde no setor de transplantes para expor a situação, mas não encontrei. Encontrei apenas o site de uma associação ligada a transplantes chamada a ABTO— Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos.” Fecha aspas.
Bela Megale: Essa foi a primeira vez que a gente ouviu falar da ABTO nesse caso. A gente queria saber mais sobre essa associação. Então fomos perguntar sobre ela ao Dr. Ben-Hur Ferraz Neto. Você já escutou a voz dele aqui no primeiro episódio. Dr. Ben-Hur é uma das maiores autoridades em transplantes no Brasil e já foi um dos presidentes da ABTO.
Dr. Ben-Hur Ferraz Neto: A ABTO foi formada por médicos, obviamente envolvidos na área, como qualquer outra sociedade médica, com a finalidade de realmente promover discussões sobre transplante; fazer o transplante ser cada vez mais realizado no país; que as coisas do transplante fossem cada vez mais conhecidas pela população, absolutamente claras, transparentes. E eu acho que assim, o que o transplante atingiu hoje no Brasil, a maturidade que o transplante atingiu hoje no Brasil, com uma a lista que a gente pode ter certeza que ninguém passa na frente de ninguém por nenhuma questão política, econômica, social, para atingir que a gente tem clareza na distribuição de órgãos… Isto foi muito pela luta da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos no decorrer de todos esses anos.
André Borges: Em outubro de 2000, meses depois da morte do filho, Paulo Pavesi mandou um e-mail para a ABTO falando dos erros na cobrança feita pelo Pedro Sanches. A associação entrou no caso e fez contato com o hospital. A partir daí, o Pedro Sanches decidiu oferecer um desconto de R$ 1.300,95, o que é mais ou menos 10% da conta total. Esse valor era relativo a uma diária de UTI, além dos procedimentos que envolveram o diagnóstico de morte encefálica do Paulinho. Mas repara na terminologia que foi usada pelo hospital: eles chamam de desconto, não reconhecem o erro. Eles não estão corrigindo a conta; eles estão dando um desconto. E, para o Paulo Pavesi , aquele desconto já não era suficiente. O próximo passo dele já estava decidido: ele ia procurar a imprensa.
Sonora Imprensa: A polêmica começou com o acidente sofrido por Paulo Veronese Pavesi neste prédio, em abril deste ano.
Bela Megale: A EPTV, que é uma filial da TV Globo no Sul de Minas, fez a primeira reportagem sobre o caso. A matéria foi ao ar no dia 28 de outubro de 2000.
Sonora Imprensa: Os pais, então, resolveram doar os órgãos. Foi quando começaram os problemas. O pai se assustou com o preço cobrado pelo hospital e não concordou com alguns itens da conta.
Bela Megale: A reportagem da EPTV chamou a atenção da mídia nacional. O caso começou a repercutir e, logo depois, o Ministério da Saúde também entrou em cena. Aquela história local de superfaturamento tinha subido para outro patamar. Naquela época, o ministro da Saúde era o José Serra. O Serra era um político experiente, ministro importante do governo Fernando Henrique Cardoso. Ele era o nome mais cotado dentro do PSDB, o partido do presidente, para disputar a próxima eleição. E, dois anos depois, o Serra foi candidato à Presidência, mas acabou perdendo a eleição para o Lula, que se tornaria presidente pela primeira vez. Mas isso já é outra história.
André Borges: Na nossa pesquisa, a gente encontrou o relatório de uma primeira visita feita pelo Ministério da Saúde em Poços de Caldas. Esse documento está lá no site do podcast. No relatório está escrito que, pouco mais de seis meses depois do acidente, no dia 5 de novembro de 2000, o Ministério da Saúde enviou uma equipe para Poços. Quem assina o relatório é a médica Rosana Nothen. Esse nome ainda não tinha surgido aqui na nossa investigação, mas, quando pesquisamos pelo nome dela, a gente descobriu que a doutora Rosana está longe de ser um personagem qualquer.
Bela Megale: Naquela época, Rosana Nothen era coordenadora do Sistema Nacional de Transplantes. Era ela que cuidava da instância máxima sobre esse assunto dentro do Ministério da Saúde. Ela ia poder ajudar a preencher algumas lacunas da história. A gente precisava falar com ela. Mas por onde andaria a doutora Rosana? A gente procurou por ela nas redes sociais e descobrimos que a doutora Rosana estava trabalhando no Hospital das Clínicas de Porto Alegre. Ela é gaúcha e tinha voltado para o Rio Grande do Sul. Conseguimos o contato da médica com o hospital e telefonamos logo em seguida. Nossa primeira conversa por telefone durou mais de 40 minutos. A gente viu que a doutora Rosana ainda tinha muita coisa engasgada sobre esse caso. Para ela, essa história nunca tinha sido resolvida.
André Borges: Depois de muitos anos em silêncio, ela topou dar o depoimento para o podcast. Seguimos em viagem, mais uma vez. Fomos até a cidade de Canela, que fica a cerca de duas horas de Porto Alegre, para encontrar com ela. Com a palavra, Rosana Nothen:
Rosana Nothen: Eu lembro com detalhes o momento que chegou a notícia da ABTO de que teria havido essa situação; de que já teria havido um e-mail anterior do pai dessa criança, e que não tinha, até o momento, sido tomada nenhuma medida por parte da ABTO. E de que agora ele tinha voltado a entrar em contato com a ABTO, dizendo que estava estado em contato com alguém da imprensa sensacionalista e que ele ia expor tudo o que tinha acontecido porque havia irregularidades na questão da doação do filho dele.
André Borges: E, como resultado dessa primeira visita, a Rosana Nothen e a sua equipe confirmaram o erro na cobrança feita para a família.
Rosana Nothen: Então, o Pedro Sanches poderia ter cobrado do SUS esses procedimentos que foram feitos depois — e não do pai. No entanto, ele não o fez: não cobrou do SUS e cobrou do pai. Quando a gente chegou lá já existia informação de que o hospital já tinha estornado da conta esses procedimentos que eram relacionados ao diagnóstico de morte encefálica e à manutenção no menino.
André Borges: Portanto, reconhecendo um erro de cobrança.
Rosana Nothen: De cobrança, exato. Ele já tinha reconhecido que tinha cobrado de forma exagerada.
Bela Megale: Depois de sete meses, o hospital finalmente reconheceu que houve uma cobrança exagerada, mas, naquela altura, era tarde demais.
Sonora Imprensa: Um escândalo.
Sonora Imprensa: A família que resolveu doar os órgãos de uma criança descobre que, no Brasil, nem tudo é tão simples.
André Borges: A reportagem do Fantástico foi ao ar no dia 19 de novembro de 2000, exatamente sete meses depois do acidente do Paulinho.
Sonora Imprensa: 19 de abril deste ano: uma travessura fatal. (…) O socorro foi imediato. Paulinho foi levado para um hospital ao lado do prédio onde morava, no centro de Poços de Caldas, Minas Gerais. A má notícia chegou 24 horas depois. (…) ó um gesto nobre para suportar tanta dor: doar todos os órgãos do filho nosso. (…) O direito de superar em paz a morte do filho foi roubado na hora em que o hospital entregou a conta: R$ 11.668.
André Borges: A reportagem fala dos erros na conta, da cobrança irregular dos procedimentos ligados ao transplante de órgãos.
Sonora Imprensa: A lei é clara: uma vez anunciada a morte encefálica clínica de um paciente, a família doadora não paga mais nada. O SUS — Sistema Único de Saúde — deve arcar com todas as despesas relativas ao transplante de órgãos.
Sonora jornalista: O hospital fala o quê?
Paulo Pavesi: O hospital nunca me atendeu. E pediu a falência da minha empresa.
Paulo Pavesi: É o próprio Paulo Pavesi que está falando sobre o pedido de falência de sua empresa, lembra que a falência foi pedida porque ele não pagou a conta hospitalar que questionava. O que vemos é a imagem de um pai lutando sozinho contra um sistema.
Sonora jornalista: Acompanhamos Paulo em mais uma tentativa de falar com o diretor do hospital, Pedro Sanches — o vizinho tão próximo que ele procura há sete meses.
Paulo Pavesi: Eu nunca consigo falar com ele.”
Sonora jornalista: Insistimos e, aos poucos, os personagens foram aparecendo: o diretor clínico do hospital, o médico responsável pela UTI, o neurocirurgião, o diretor administrativo do hospital e o responsável pela Central de Transplantes na região, Dr. Álvaro Ianhez.
André Borges: A equipe do programa acompanhou Paulo Pavesi até o hospital onde o seu filho morreu. Pelas imagens, a gente pôde perceber que os funcionários do hospital foram pegos de surpresa. Os médicos se colocam na defensiva. Alguns se enrolam para responder às perguntas; outros não quiseram falar com a reportagem. No dia 23 de novembro de 2000 — quatro dias depois do Fantástico ir ao ar — o Ministério da Saúde emitiu uma nota sobre o caso. Ela reconhecia que o hospital tinha excedido a cobrança. A nota também dizia que o ministro da Saúde, José Serra, tinha determinado a realização de uma auditoria mais ampla no sistema de transplantes de Poços de Caldas.
Sonora Imprensa: Domingo passado, o Fantástico denunciou o Hospital Pedro Sanches, em Poços de Caldas, Minas Gerais, por ter cobrado de Paulo e Rosângela Pavesi todos os custos para doação de órgãos do filho deles, morto num acidente. Depois da denúncia, o Ministério da Saúde instaurou uma auditoria para apurar os valores cobrados pelo hospital. A auditoria termina em duas semanas e, comprovadas as irregularidades pelo Ministério da Saúde, encaminha à Procuradoria-Geral da República um pedido de inquérito para punir os responsáveis. Estamos de olho.
Bela Megale: A auditoria foi realizada entre dezembro de 2000 e janeiro de 2001. Uma equipe do Departamento Nacional de Auditoria do SUS foi enviada para Poços de Caldas. A equipe era formada por cinco médicos, uma enfermeira e uma contadora. Os trabalhos de campo abrangeram diversos órgãos da cidade. Além do Hospital Pedro Sanches, a auditoria mirou a Santa Casa de Misericórdia, a MG Sul Transplantes, a Secretaria Municipal de Saúde de Poços e as centrais de notificações, captação e distribuição de órgãos regional e estadual.
André Borges: A equipe de auditoria encontrou diversas irregularidades em todos os locais analisados. Havia imprecisão no preenchimento de prontuários. As condições da UTI e do centro cirúrgico do Hospital Pedro Sanches foram consideradas precárias, e ainda havia irregularidades no credenciamento dos hospitais junto ao SUS. Foram apontados problemas também em relação ao Dr. Álvaro Ianhez, como acumular funções no processo de transplante. A auditoria apontava que a lista regional de receptores de órgãos não obedecia aos critérios estabelecidos pela legislação. A equipe também fez uma revisão das cobranças efetuadas pelo Pedro Sanches sobre a internação do Paulinho. Chegava-se, agora, a um novo valor de conta: um total de R$ 7.011,10. E isso incluía honorários médicos, exames, materiais, medicamentos, diárias e taxas. O valor, dessa vez, caía 40% em relação ao preço original. O relatório completo dessa auditoria a gente também colocou lá no site do podcast. Ele é um pouco longo, mas, no site, se você quiser, consegue ler com calma.
Bela Megale: Depois que a auditoria do Ministério da Saúde foi concluída, o caso chegou então à Procuradoria-Geral da República (PGR). É nessa hora que entra na história outro nome bastante importante: o procurador da República Adailton Ramos do Nascimento. Foi ele que ficou responsável pelo caso. Procurador é quem toma as medidas necessárias para apurar os fatos. Ele pode requisitar informações, determinar diligências e, se for o caso, encaminhar uma cópia do procedimento para a Polícia Federal, pedindo a instauração de um inquérito policial. E foi isso que o Dr. Adailton fez no dia 8 de março de 2001, quase um ano depois do acidente do Paulinho. O Dr. Adailton Ramos do Nascimento abriu um procedimento pedindo a instauração de um inquérito para investigar as denúncias da reportagem do Fantástico. A gente tinha que falar com ele. Nosso próximo destino era Belo Horizonte.
Sonora: Eu vou realizar seu embarque no portão de número 22. E, para encerrar, temos algumas instruções.
André Borges: Adailton Ramos do Nascimento recebeu a gente no seu escritório, no Edifício Fraternitas, onde funciona a sede do Ministério Público Federal de Minas Gerais, um prédio no bairro nobre de Belo Horizonte.
Bela Megale: Estou sou a Bela e estou com o André. Tudo bem? Como vai?
Adailton Ramos: Eu me recordo. Na época, além de titular de ofício criminal, eu era coordenador do Núcleo Criminal, e entrou na minha sala um colega, o procurador regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), e foi acionado por Brasília, pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. São setores que trabalham com a cidadania. E noticiou o caso. “Olha, está tendo um caso com repercussão em Poços de Caldas e eu gostaria que você desse uma olhada.” O colega da cidadania bateu na minha porta, entrou e falou: “Eu estou aqui com o caso, mas eu acho que ele é criminal.” Portanto, ele acompanhou e chegou até a instaurar o inquérito civil e entrou com ação civil pública, mas eu acho que essa questão é criminal. Foram algumas reportagens que fizeram o caso aflorar.
Bela Megale: No dia 13 de março de 2001, a pedido do Ministério Público, foi instaurado um inquérito pela Polícia Federal para identificar e apurar se havia responsabilidade criminal dos médicos que atenderam o menino no hospital e que transplantaram os seus órgãos. O caso tomava uma dimensão ainda maior.
Sonora Imprensa: A morte de um menino de dez anos revela um escândalo no sistema de transplantes de Minas Gerais.
Sonora Imprensa: As denúncias do pai foram parar na Polícia Federal.
Sonora Imprensa: Paulo Pavesi e a mulher, Rosana, vão para Brasília buscar respostas, quase um ano depois do enterro do filho.
André Borges: A segunda reportagem do Fantástico foi ao ar no dia 25 de março de 2001, quase um ano depois do acidente.
Sonora Imprensa: Brasília, sexta-feira, 23 de março de 2001: os pais de Paulinho foram chamados para depor na Polícia Federal. (…) O resultado da auditoria aberta por uma cobrança indevida foi ainda mais hoje: revelou um escândalo no sistema de transplantes de Minas Gerais. A Central de Poços de Caldas nunca foi credenciada.
André Borges: A reportagem dizia que a Central de Transplantes de Poços de Caldas era clandestina.
Sonora imprensa: Na Central de Poços de Caldas, que nunca existiu legalmente. Acúmulo de função ilegal.
Sonora jornalista: Quem fez o transplante?
Sonora entrevistado: Dr. Álvaro Ianhez.
Sonora jornalista: E quem captou os órgãos?
Sonora entrevistado: Dr. Álvaro Ianhez.
Sonora entrevistado: Em nenhuma hipótese, a pessoa que faz o diagnóstico de morte encefálica pode fazer o transplante. Sem dúvida, é um descumprimento da lei.
André Borges: Se a primeira reportagem mexeu com a opinião pública, a segunda ampliaria esse alcance. Além de falar em uma central clandestina de transplantes, acusavam os médicos de desrespeitar a fila única de receptores de órgãos e colocavam o Dr. Álvaro Ianhez como mentor desse esquema, no centro das acusações. Antes mesmo do inquérito policial ser concluído, antes de qualquer denúncia ser apresentada pelo Ministério Público, os médicos do Pedro Sanches, da Santa Casa e, sobretudo, o Dr. Álvaro já estavam condenados pela opinião pública. O roteiro estava dado: um grupo articulado de vilões atuava clandestinamente nos hospitais da pequena cidade mineira de Poços de Caldas.
Sonora Carlos Mosconi: Sr. Presidente, peço a vossa excelência a palavra para a comunicação do partido.
Bela Megale: O caso já tinha escalado para dentro do governo federal, e agora chegava a hora de entrar no Congresso Nacional. No dia seguinte da reportagem do Fantástico, o deputado federal Carlos Mosconi, do PSDB, partido do então presidente Fernando Henrique Cardoso, pediu a palavra no plenário. Mosconi era vice-líder do PSDB na Câmara dos Deputados.
Sonora Mosconi: E, ontem, para minha grande surpresa, observei o secretário Nacional de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde dizer que era como se fosse ali os transplantes realizados de maneira clandestina; que não havia nada oficial que pudesse credenciar essas equipes como transportadoras, como equipes em condições de retirar os órgãos. Eu fiquei absolutamente estarrecido com o que ouvi, porque eu conheço lá, eu sou médico lá naquele hospital e sou colega desses profissionais.
Bela Megale: Mosconi entrou para a política pelas mãos de Tancredo Neves, no fim dos anos 1980, quando ele já era deputado em Moscou e foi um dos criadores do SUS — o Sistema Único de Saúde — que passou a vigorar com a Constituição de 1988. Mosconi já tinha trabalhado nos dois hospitais envolvidos naquele escândalo de Poços de Caldas. Ele também foi um dos responsáveis por levar o serviço de transplantes para a cidade. Por isso conhecia bem todos os citados pela reportagem.
Sonora Mosconi: E, mais do que isso, sr. presidente, eu ouvi este representante do Ministério da Saúde dizer: “não, é crime. Isto foi um crime.” Pois eu quero saber: que crime é este? Eu tenho aqui em minhas mãos uma portaria do Ministério da Saúde assinada por este senhor, que é o secretário de Ações de Saúde do Ministério da Saúde. Está aqui em minhas mãos. Portaria no dia, portaria número 357, do dia 21 de julho de 1999, que diz o seguinte: “O secretário de Assistência à Saúde, no uso de suas atribuições legais e considerando…, aqui faz uma série de considerações sobre dispositivos legais, diz assim… E considerando a manifestação favorável da Central de Transplantes de Minas Gerais, resolve, artigo primeiro: conceder a autorização para realizar retirada de órgãos e transplantes de rim. A equipe especializada, assim identificada, é composta de: dois pontos — o primeiro responsável técnico, Dr. Álvaro Ianhez, nefrologista, com CRM N-12.902 de Minas Gerais” — e aí dá a lista dos outros profissionais.
André Borges: Mosconi resolveu comprar briga com o próprio partido, e o clima esquentou dentro do PSDB. Inconformado com as acusações contra os médicos, ele concluiu que não havia mais condições de apoiar a candidatura do Serra para a Presidência da República. A situação chegou a tal ponto que comprometeu inclusive a própria candidatura dele para tentar a reeleição como deputado federal por Minas Gerais. Lá em 2002, naquela ocasião, Mosconi já estava no seu quarto mandato na Câmara.
Bela Megale: Por anos, ele nunca aceitou falar sobre esse assunto, que teve um custo não só para o seu destino político, mas também pessoal. Depois de meses de insistência, Mosconi finalmente concordou em receber a gente na sua casa para uma entrevista. Ele ainda mora em Poços com a esposa, Maria Lúcia, que também acompanhou tudo de perto.
Carlos Mosconi: Bom, a questão não é a política. Eu fiquei tão envolvido nessa história, tão angustiado com isso… O Serra é candidato a presidente, eu sou candidato a deputado federal. Como é que eu vou levar o Serra lá na minha terra e vou dizer: “aí, gente, vocês votam no Serra.”? Eu não tinha condição de fazer isso; então eu não fui candidato.
Bela Megale: Mosconi desistiu da candidatura. Com esse episódio, ele também se afastou do Serra, mesmo como líder do governo na Câmara. Mosconi decidiu apoiar um opositor para a Presidência da República, Ciro Gomes, o Serra, que era pré-candidato, não queria correr o risco de ser acusado de abafar um escândalo na saúde, que era a pasta que ele comandava, porque isso podia respingar na sua campanha. O tempo passou. Mosconi conta que a fervura baixou e que, depois, ele se reaproximou do Serra.
Carlos Mosconi: Então o Serra… Eu não culpo o Serra de nada. Ele teve um momento que não foi ele, foi de alguém do time dele. Opa, isso aqui, isso aqui não está bom. E ele aceitou até o momento que ele viu que não era bem assim.
André Borges: No seu livro, o Paulo Pavesi comenta sobre a fala que a gente ouviu aqui, feita por Mosconi na Câmara. Abre aspas: “A atitude de Mosconi me incentivou a buscar respostas. Ele estava colocando em jogo a sua carreira política em defesa de irregularidades e até mesmo crimes. Fazendo pesquisas na internet, encontrei a resposta. Em um jornal da ABTO, um texto comemorava a criação da ONG MG Sul Transplantes. Entre os nomes dos criadores estavam as iniciais C.E.V.M. Carlos Eduardo Venturelli Mosconi. A ONG foi tomando corpo. Impôs-se como uma central de captação e distribuição de órgãos, apoiada por entidades como a ABTO. Concluí que o deputado não estava defendendo o interesse da saúde como cuspia o microfone do plenário, mas tentando salvar a própria pele.” Fecha aspas.
Bela Megale: Os insultos e as acusações do Pavesi contra Moscone não se limitaram ao seu livro. O deputado se tornou um dos seus principais alvos na internet. Isso inclui até ameaça de morte, com pagamento para quem se dispusesse a assassinar o Mosconi ou membros de sua família. Além de dinheiro, Pavesi ofereceu cidadania no exterior para o criminoso.
Carlos Mosconi: Então, desde o começo, comecei a receber ameaças, além das calúnias. E aí culminou com ameaças a mim e à minha família, com o preço. Meus filhos valiam tanto; meus netos valiam tanto para quem liquidar. Você imagina? Isso chegou a ser feito. E isso foi motivo também de uma ação minha contra o denunciante.
André Borges: A postagem feita no blog do Pavesi , quando ele já estava vivendo fora do Brasil, trazia uma foto do Moscone com o texto: “Ele oferecia £1.000 — hoje, cerca de R$ 7.000 — para quem matasse o deputado.” Esse valor aumentava para £1.500 se o alvo do assassinato fosse um filho do deputado. A proposta final era de duas £2.000 para quem matasse um neto do deputado. Pavesi escreveu que a oferta se estendia aos outros médicos envolvidos no caso. Ele também incluiu desembargadores. Quem matasse um desses receberia ainda um extra de £500.
Sonora imprensa: O inquérito foi concluído depois de um ano de investigação. Ao todo, 1.825 páginas que comprovam a retirada irregular de órgãos na Santa Casa de Poços de Caldas. O MG Sul Transplantes, descredenciado pelo Ministério da Saúde em novembro do ano passado, na época não tinha autorização para funcionar.
Bela Megale: No dia 5 de abril de 2002, quase dois anos depois do acidente, a Polícia Federal entregou ao Ministério Público o relatório final do inquérito sobre a morte do Paulinho. Quatro médicos foram indiciados pela retirada ilegal de órgãos de Paulo Veronese Pavesi , infringindo a chamada Lei dos Transplantes. Eles foram acusados de remover órgãos irregularmente. Esses médicos eram Cláudio Fernandes, Celso Skaf, Álvaro Ianhez e Odilon Trefiglio Neto. O Álvaro já tinha aparecido em todas as reportagens sobre o caso, mas os outros três médicos ainda não tinham sido citados pela imprensa. Já falamos deles no primeiro episódio. Esses foram os médicos que participaram da retirada dos órgãos do Paulinho na Santa Casa. Cláudio Fernandes e Celso Skaf eram cirurgiões da equipe da MG Sul Transplantes. O Odilon era oftalmologista e participou da retirada das córneas. Mas, quando a bola volta para o Ministério Público, não é essa denúncia que seria apresentada.
Adailton Ramos: O dissenso entre o Ministério Público e a polícia ocorre muitas vezes. Muitas vezes eles fazem uma coisa, a gente fala outra. Eles classificam de jeito, a gente classifica de outro.
André Borges: A gente escutou o procurador Adailton Ramos do Nascimento. Ele foi um dos que assinaram a primeira denúncia. O Adailton nos explicou por que os médicos que atuaram na retirada dos órgãos não foram denunciados pelo Ministério Público Federal, mesmo depois de terem sido incriminados pela Polícia Federal.
Adailton Ramos: Qual é o fundamento? Qual foi o fundamento da denúncia do Ministério Público Federal? Nenhum desses médicos citados agiu antes do stop; até o stop, é uma pessoa em tratamento; depois do stop, é outra coisa.
André Borges: O stop é um termo usado para falar da interrupção de qualquer atividade cerebral; ou seja, ele é a morte cerebral. O que a procuradoria não explica vai ser uma parte fundamental desse caso. Ele conta que, no entendimento da Polícia Federal, os médicos da Santa Casa teriam feito a retirada dos órgãos antes desse stop — ou seja, com Paulinho ainda vivo. Por isso seria um crime previsto na Lei dos Transplantes. Mas ele e seus colegas do Ministério Público tinham um entendimento completamente diferente. Para o Ministério Público, esses médicos da Santa Casa só entraram em cena depois que o menino já estava morto; portanto, não tinham cometido nenhum crime. Para eles, o Paulinho já teria chegado sem vida até a Santa Casa.
Sonora Imprensa: Médicos de Poços de Caldas, sul de Minas Gerais, são acusados de forjar a morte cerebral de um menino para retirar os órgãos para doação. Eles foram denunciados à Justiça pelo Ministério Público.
Sonora Imprensa: Os médicos José Luiz Gomes da Silva, José Luiz Bonfitto, Marco Alexandre Pacheco e Álvaro Ianhez são acusados de homicídio doloso qualificado. Eles são acusados de ter diagnosticado a morte cerebral de Paulo Pavesi enquanto ele estava sob o efeito de sedativos. O médico…
Bela Megale: A denúncia do Ministério Público foi assinada por Adailton Ramos do Nascimento e mais três procuradores. A conclusão era o oposto daquela apresentada pela Polícia Federal: a PF não indiciou os médicos pelo crime de homicídio e sim pelo descumprimento da Lei de Transplantes. O inquérito da PF sequer atribui o crime aos médicos que acompanharam Paulinho no Pedro Sanches. Só que, para a Procuradoria, a versão era outra: os médicos do Pedro Sanches e Álvaro Ianhez eram os verdadeiros culpados. O Ministério Público entendeu que eles teriam matado o menino Paulo Veronese Pavesi para retirar os seus órgãos.
Adailton Ramos: O evento “Morte”, ou evento STOP, ou o evento “Declaração de Morte” — ele foi buscado o tempo todo. E, se alguém age para buscar a morte, para buscar a constatação de morte para ter aquele registro ali, obstinadamente a pessoa comete homicídio.
Bela Megale: No próximo episódio de O Caso Zero…
André Borges: “Caso Zero – A história que mudou o rumo do transplante de órgãos no Brasil” é uma série original do jornal O GLOBO. A reportagem, pesquisa e narração foram feitas por Bela Megale e André Borges. O roteiro é de Ives Rosenfeld, com colaboração de Bela Megale e André Borges.
Bela Megale: A edição e sonorização são do João Guilherme Lacerda, com trilha original de Gabriel Falcão e mixagem de Vinícius Lis.
André Borges: O desenvolvimento e a coordenação da produção são do Alexandre Maron, da Ampère Media. A produção executiva é de Allan Grip e André Miranda.
Bela Megale: A pesquisa adicional foi feita por Elisa Soupim, buscando material da TV Record, TV Globo, EPTV, G1, TV Câmara e nos jornais O Estado de Minas, Mantiqueira e O Tempo.
André Borges: Os áudios também incluem material da Câmara dos Deputados e do YouTube. O podcast foi gravado no Estúdio Madruga, em Brasília.