A campanha de execuções públicas e de perseguição a grupos dissidentes lançada pelo Hamas após o início do cessar-fogo com Israel na Faixa de Gaza acendeu um sinal de alerta entre grupos de defesa de direitos humanos, que denunciaram como graves violações o que classificaram como execuções extrajudiciais. Analistas ouvidos pelo GLOBO apontam que a onda de violência observada no enclave palestino é parte de um movimento do Hamas para retomar à força o controle de fato do território, em um reposicionamento antes da continuidade das negociações políticas — uma abordagem interna que pode ter como efeito colateral externo uma participação ativa de países árabes e de maioria islâmica para atingir o objetivo de Israel de desarmar o grupo palestino e excluí-lo da futura administração do enclave.
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As Forças de Dissuasão do Hamas emitiram um comunicado nesta quarta-feira, anunciando uma operação de “purificação da frente interna”, voltada a localizar e punir pessoas que colaboraram de alguma forma com Israel ao longo dos dois anos de guerra. O anúncio também trouxe um recado à população palestina, para que os moradores delatassem possíveis dissidentes.
“Reafirmamos que permanece aberta a última oportunidade para corrigir o rumo e fornecer qualquer informação disponível àqueles que desejam retornar ao abraço da pátria. Depois disso, não haverá escapatória da mão severa da justiça, que alcançará todo traidor e seu protetor”, disse um trecho do comunicado, traduzido para o inglês pela rede americana CNN.
Com o início do cessar-fogo e o recuo do Exército israelense, forças do Hamas voltaram a ser vistas circulando por diferentes partes do território palestino, encapuzadas e portando armas de assalto. O retorno à vida pública também veio acompanhada de embates com clãs armados que divergem dos rumos traçados pela organização, com confirmação de mortos em combate, e propagação de vídeos da execução de dissidentes em praça pública, sob a plateia de dezenas de pessoas.
— O Hamas tenta reimpor sua liderança por meio de uma combinação de força e medo, perante uma sociedade palestina profundamente rachada, que não aceita o governo de forma absoluta — afirmou Gunther Rudzit, professor de Relações Internacionais da ESPM. — Estrategicamente, o grupo não quer apenas uma posição melhor [nas negociações], mas sim sua sobrevivência, criando uma realidade no terreno que não possa ser mudada.
A estratégia de confronto adotada pelo Hamas foi recepcionada de maneiras distintas por aliados fora e dentro de Gaza. No território palestino, milícias armadas próximas ao grupo declararam apoio à ação, com as Facções de Resistência Popular (FRP), conjunto de braços armados que adere ao governo do Hamas, endossando publicamente o que classificaram como uma “campanha de segurança”. A FRP disse em nota que a estratégia “conta com total apoio, consenso nacional e respaldo de todas as facções palestinas, bem como do aparato de segurança da resistência”.
Entre aliados regionais, o cálculo é diferente em um contexto de cansaço com a guerra e desejo de uma estabilização. Países como Catar e Turquia engajaram nas negociações que resultaram no plano de 20 pontos do presidente americano, Donald Trump, para a paz, que inclui expressamente entre seus artigos a entrega de armas pelo Hamas e sua exclusão da governança no pós-guerra. O aceite dos aliados chegou a motivar reclamações públicas do Hamas sobre a falta de apoio à causa palestina.
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— [A estratégia atual do Hamas] vai contra os interesses dos governos árabes e da Turquia quanto ao futuro de Gaza. Eles sabem que se o Hamas não for desarmado e sair do poder, Israel pode retomar a guerra, e isso as monarquias da região não querem — afirmou Rudzit, recordando que os pontos listados por Trump falam sobre a criação de uma força de estabilização internacional, com participação dos países árabes. — A atual onda de violência oferece uma vantagem para Israel, criando uma situação em que as monarquias do Golfo podem não só pressionar o Hamas, mas sentirem a necessidade de enviar “capacetes azuis” para Gaza.
A avaliação da professora Monique Sochaczewski, que leciona Relações Internacionais no IDP, é de que a pressão pelo fim do conflito no âmbito dos países árabes e islâmicos alcançou um nível que forçou esses atores regionais a buscarem uma solução definitiva, sendo a volta de uma situação de conflito o pior cenário.
— Os países árabes e muçulmanos têm todo o interesse em acabar essa guerra. Há uma pressão dentro desses regimes, todos eles não democráticos, que faz com que os governos precisem entregar alguma coisa em relação à questão palestina. Eles precisam acabar o conflito para entregar a narrativa, sobretudo dos países do Golfo, de segurança e prosperidade por meio do comércio — disse a professora.
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Colapso da ordem pública
A campanha de retaliação interna do Hamas já provocou danos de imagem no exterior. Um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Alemanha afirmou que o país classifica as execuções em praça pública como um ato de terrorismo. O subsecretário-geral da ONU para Assuntos Humanitários, Tom Fletcher, declarou nesta quarta-feira “grave preocupação” com os indícios de violência contra civis.
Entre os palestinos, a opinião sobre o retorno do Hamas é diverso. Em relatos à imprensa internacional, moradores de Gaza se dividiram entre aqueles que consideraram o nível de violência utilizado como um excesso, enquanto outros disseram que a volta de alguma autoridade para suas regiões, após dois anos de guerra, era motivo de otimismo quanto o combate ao crime.
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A Comissão Independente Palestina para os Direitos Humanos (CIDH), organização de direitos humanos criada por Yasser Arafat, declarou profunda preocupação com a questão das execuções sumárias, que disse que “não podem ser justificados em nenhuma circunstância”, cobrando o Hamas a assumir “responsabilidades nacionais e legais na proteção dos direitos e liberdades públicas”. Apesar disso, o grupo citou o cenário atual como uma consequência do caos criado pela guerra.
“Essas violações também refletem o profundo colapso da ordem pública e a desintegração das instituições de aplicação da lei”, manifestou-se o CIDH. “São uma consequência direta e devastadora da agressão israelense e de suas políticas, que têm como alvo as estruturas institucionais palestinas e criado um perigoso vácuo jurídico e humanitário que ameaça os fundamentos da justiça e da segurança comunitária. (Com AFP)