A recomendação dos médicos contrasta com os quase 40ºC graus que tem feito em Araras, vilarejo no município de Faina, interior de Goiás. Para boa parte dos mil moradores, o indicado é evitar por completo qualquer exposição ao sol. O motivo é a alta prevalência, que chega a ser a maior registrada no mundo, de uma doença genética rara chamada xeroderma pigmentoso. O diagnóstico eleva em 10 mil vezes o risco de câncer de pele.
Na população geral, as estimativas são de um caso a cada 1 milhão de pessoas, ou seja, pouco mais de 200 brasileiros vivem com a condição. Já em Faina, cuja população é de 7.167 habitantes, segundo a estimativa deste ano do IBGE, a proporção chega a 1 a cada 410. Considerando apenas o vilarejo de Araras, é 1 paciente a cada 40 habitantes, aponta a Associação Brasileira do Xeroderma Pigmentoso (AbraXP).
— O xeroderma tem uma genética autossômica recessiva, precisa que os dois pais tenham esse gene. O número alto de casamentos consanguíneos na região favorece isso, então entre primos, membros da mesma família. A grande característica dessa condição é que a pessoa não faz o reparo do DNA na pele. Quando o raio ultravioleta, que é um agente cancerígeno, incide na pele, já leva direto a uma mutação e ao desenvolvimento de câncer — explica Carlos Barcaui, presidente da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD).
Ele conta que o diagnóstico, que não tem cura, é também associado a alterações neurológicas e a uma maior ocorrência de tumores internos. Com isso, a expectativa de vida dos pacientes é reduzida, geralmente até os 40 anos. O médico esteve no vilarejo goiano, que fica a cerca de 3h30 da capital do estado, no último final de semana de setembro, quando a SBD realizou a Expedição Recanto das Araras
A iniciativa, que acontece a cada dois anos e completa uma década em 2025, leva acesso a diagnóstico precoce e tratamentos dos casos de câncer até Araras. Neste ano, foram montados três centros cirúrgicos, consultórios móveis, exames de imagem, além da distribuição de roupas de proteção e protetores solares numa parceria da entidade médica com a La Roche-Posay e a SAS Brasil.
Ao todo, foram 13 médicos, que fizeram mais de 160 consultas e mais de 40 cirurgias em apenas dois dias. Ao longo de dos 10 anos de expedição, a SBD estima que já foram feitas cerca de 800 consultas dermatológicas e 200 cirurgias para a retirada de lesões. O impacto é significativo, diz Barcaui:
— Nesse tempo, vimos uma melhora progressiva visível na qualidade de vida das pessoas. Hoje, quase não vemos deformidades como antes. A extensão dos tumores diagnosticados e tratados diminuiu. Sem dúvida, isso é reflexo de uma maior conscientização da população também, tanto em relação à fotoproteção quanto à importância de buscar cuidados médicos precoces.
Julimar Flôres, de 30 anos, é um dos pacientes atendidos na expedição desde a sua primeira edição. O vendedor de velas, cujos pais são primos de primeiro grau, começou a manifestar o xeroderma aos 4 anos com uma mancha que se espalhou pelo corpo e foi diagnosticada como um câncer raro de pele. Na época, a população de Araras ainda não conhecia a doença genética e sua relação com os tumores.
— Aos 7, tive outro câncer na língua que me fez perder o nariz e, em 2020, tive um que levou à perda da minha face labial. Foi uma fase muito difícil. Tentei suicídio duas vezes, mas Deus impediu. Hoje, uso uma prótese no rosto e vivo uma vida mais estável. Mas, querendo ou não, vai chegar um dia que eu vou partir. A maioria das pessoas que eu conheci que têm xeroderma acabou falecendo — conta.
O diagnóstico já levou Julimar a fazer mais de 300 procedimentos cirúrgicos para retirar lesões na pele. Nos últimos anos, o acesso a uma imunoterapia pelo Sistema Único de Saúde (SUS) tem mantido os tumores sob controle, porém o medicamento foi cortado sem explicações em 2023.
— A dose dele é muito cara, R$ 21 mil. Tomei 14 doses, era uma a cada 21 dias. Cheguei a entrar na Justiça com um advogado particular, mas é um dinheiro muito alto. Estou tentando na defensoria. Mas a maior dificuldade hoje é o preconceito. A aparência fala mais alto do que qualquer coisa, do que um bom coração. As pessoas ainda acham que é uma doença contagiosa, que por estarmos perto elas podem pegar. Não merecemos esse desprezo — relata.
Na ausência de uma cura, outro desafio recorrente das pessoas que vivem com a doença é adaptar a rotina para a necessidade de evitar o sol. Maria Darci Apolinário de Bastos, de 44 anos, presidente da AbraXP, conhece de perto a importância de aderir aos cuidados: ela e mais três de seus nove irmãos vivem com xeroderma, e um faleceu antes mesmo de descobrir o que era a condição genética.
— O meu é bem leve, faço biópsias, mapeamento anual das lesões, ou conforme o médico nos passa. Mas, depois que descobri o diagnóstico, tenho outra rotina. Mudei minhas roupas, meu horário de trabalho. Levanto bem cedinho, faço o que preciso fora de casa e, no período do sol, de 10h às 16h, evito ao máximo sair. Uso protetor todo dia de duas em duas horas. Usamos sombrinhas, óculos, boné, blusa de manga longa, o máximo de proteção. Vemos o avanço da doença nos colegas e sabemos o quão grave é — conta.
Até 2008, boa parte dos moradores de Araras nunca havia ouvido falar no nome xeroderma pigmentoso. A identificação do raro diagnóstico na comunidade começou quando Gleice Machado, fundadora da AbraXP e secretária municipal de Saúde de Faina, percebeu algumas bolhas e vermelhidão na pele de seu filho, Alisson, na época com 4 anos.
Ela o levou a uma dermatologista que acreditou se tratar de lesões normais pela pele dele ser mais sensível e pediu que a mãe acompanhasse o quadro. Um ano depois, as lesões pioraram, e Gleice voltou à médica, que deu o diagnóstico de xeroderma pigmentoso.
— Basicamente mudamos toda a nossa rotina. Antes morávamos na fazenda, hoje vivemos no povoado e temos um pequeno comércio. Tudo pensando no acesso aos cuidados, em evitar o sol. Mas é uma dificuldade, porque ele vive uma rotina de cirurgias muito grande e luta contra uma depressão severa. É uma vida de muitas limitações — afirma.
Na época, foi a fundadora da AbraXP que contou à médica que outros moradores de Araras tinham um quadro semelhante, o que foi recebido com estranhamento. Com o tempo, porém, a dermatologista foi ao vilarejo e confirmou pela primeira vez que de fato se tratava de uma comunidade única no mundo, com uma prevalência altíssima da condição genética.
— Ela falou que era impossível porque a doença é muito rara e dificilmente teria um grande número de pacientes. A partir daí, levantei todas as pessoas que tinha e apresentei a ela, e descobrimos que era de fato xeroderma. Nossa história começou a repercutir e nos organizamos na associação. Ao longo dos últimos 15 anos, houve livros, documentários e muito interesse de cientistas — diz Gleice.
É o caso da equipe liderada pelo geneticista Carlos Menck, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). Por volta de 2010, logo após a história de Araras começar a repercutir, os pesquisadores foram ao vilarejo e deram início a uma série de estudos sobre a genética da população local.
— Minha reação inicialmente foi ceticismo, mas fomos lá e vimos claramente que eles tinham a doença. Nos primeiros três anos, identificamos quais eram os genes mutados nesse grupo de indivíduos e vimos que havia duas mutações distintas. Depois fizemos um trabalho de origem e descobrimos que uma delas veio de uma família da Espanha há cerca de 200 anos. A outra não conseguimos identificar a origem — conta Menck.
Além das descobertas científicas, a maior atenção a Araras possibilitou melhorias na comunidade, como a construção de 50 casas destinadas a pacientes com xeroderma e suas famílias. Ainda assim, Gleice pontua que há muitas demandas não atendidas e que diversas conquistas foram fruto de iniciativas privadas. Ela pede uma maior atuação do poder público:
— Ainda estamos muito longe do que seria realmente necessário considerando toda a gravidade da doença. Nosso maior desafio ainda é uma questão estrutural, nossa comunidade não é adaptada à realidade dos pacientes. Por exemplo, nossa quadra ainda não é coberta. Uma UBS que era para ter sido inaugurada em 2014 ainda não está concluída. Isso nos deixa um pouco desacreditados porque estamos há bastante tempo chamando atenção para nossa realidade. E precisamos da ação do poder público, porque é uma doença crônica, e as pessoas continuarão vivendo aqui com ela por um bom tempo.
Em termos de tratamento, ela reforça a importância da oferta de novas imunoterapias, que conseguem diminuir a necessidade de cirurgias, no SUS e do maior acesso à cirurgia de Mohs, um procedimento cirúrgico mais preciso para remover o câncer de pele que evita o risco de lesões residuais.