Como professora de cinema da Bard College, no estado de Nova York, Kelly Reichardt adora acompanhar as interações de seus alunos e observar para onde eles gostam de “apontar suas câmeras pela primeira vez”. Como diretora de filmes, a realizadora americana, um dos nomes mais respeitados do cinema independente contemporâneo, costuma revisitar gêneros consagrados para revirá-los e então oferecer um olhar novo sobre ambientes, estruturas narrativas e tipos humanos que, por repetição, viraram clichês. Em “The mastermind”, que chega hoje aos cinemas brasileiros, a autora de “First cow — A primeira vaca da América” (2019), no qual embaralhava os códigos do western viril, agora evoca os dos filmes de assalto à moda antiga, especialmente os produzidos durante a Nova Onda de Hollywood, entre os anos 1960 e o início dos 1970.
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Na trama, Josh O’Connor (o príncipe Charles em duas temporadas da série “The Crown”) interpreta James Mooney, um carpinteiro desempregado, pai de família e estudante de arte frustrado que planeja e executa um roubo de quadros de um museu da cidade onde mora, só para descobrir que roubá-los é mais fácil do que usufruir ou desfazer-se deles. Diferentemente de filmes de assalto modernos, como “Onze homens e um segredo” (2001) e “Gênios do crime” (2016), que enfatizam e glamourizam a ação do crime em si, “The mastermind” concentra-se nas consequências do ato inconsequente e nos dilemas que ele impõe ao protagonista, que não tem o charme ou a esperteza de seus pares em produções do mesmo gênero, mais luxuosas e vibrantes: preso numa espiral de erros, James é forçado a pegar a estrada, deixando a mulher e os filhos para trás.
— Além de admirar os filmes da Nova Onda de Hollywood, também sou fã de alguns filmes de assalto franceses, como “O círculo vermelho” (1970), ou mesmo “Cai a noite sobre a cidade” (1972), de Jean-Pierre Melville (1917-1973), um diretor que amo. Mas são filmes sobre homens feito por homens. O personagem de Josh vem dessa linhagem de homens meio frustrados e atrapalhados, mas que também são meio heróis, e que consagrou atores como Bruce Stern e Elliot Gould — diz a cineasta, que exibiu seu filme na mostra competitiva do Festival de Cannes. — James Mooney é um cara inteligente o suficiente para se enrascar, mas não é inteligente suficiente para sair do problema. Segui essa tradição, mas também para quebrá-la um pouco. O gênero é desconstruído, assim como o plano de Mooney.
O roteiro, também assinado por Kelly, é inspirado num roubo semelhante ocorrido em 1972, no Museu de Arte de Worcester, no estado de Massachusetts, onde dois quadros de Gauguin, um de Picasso e uma peça de Rembrandt foram levados durante o horário de funcionamento do museu — as obras foram recuperadas rapidamente e os ladrões foram presos. “The mastermind” é ambientado em 1970, e reproduz a precariedade dos sistemas de alarme analógicos da época, sem câmeras de vigilância e protocolos de segurança de que dispomos hoje. A história se passa numa cidade fictícia, que abriga um museu rico em peças do americano Arthur Dove, pioneiro da arte abstrata. Logo no início, acompanhamos James checando a segurança da instituição, escondendo uma pequena estatueta dentro da bolsa de sua mulher, sob o nariz dos guardas.
— Durante o trabalho de promoção de “Showing up” (2022), meu filme anterior, estava sob a pressão de encontrar algo novo para trabalhar, e que não fosse parecido com algo que já havia feito antes. Há muito tempo andava interessada no gênero de assalto, lia bastante coisa a respeito, e então topei com a efeméride do aniversário de 50 anos do caso das adolescentes que cruzaram o caminho dos criminosos do museu de Massachusetts. Por coincidência, eu frequentei a escola de artes lá. Essa foi a semente de tudo, e uma forma também de homenagear a obra de Dove — diz Kelly, ganhadora do prêmio Robert Altman do Independent Spirit Awards de 2024 por “Showing up”. — Nos filmes de assalto tudo é grandioso e tudo vai bem, mesmo quando dá errado. Mas eu queria lidar com as coisas pequenas, com os passos de uma pessoa comum diante de um ato tão ambicioso.
Conhecida por seus personagens que vivem à margem da sociedade e da História, Kelly Reichardt pinta, com muita sutileza, o pano de fundo político da época. Em 1970, os Estados Unidos estão envolvidos na Guerra do Vietnã, e as manifestações de mães, soldados, hippies e estudantes se multiplicam pelo país, mesmo reprimidas pela polícia. Filho de um juiz e pai de família, ou seja, imune a uma possível convocação, James Mooney parece indiferente ao noticiário da TV e do rádio, às imagens em preto e branco das marchas que cruzam o país, às reivindicações do movimento feminista, ao discurso dos artífices da contracultura. Admirador das artes, aspirante a colecionador e, quem sabe, futuro agente do mercado negro, o protagonista de “The mastermind” é um representante da alma dividida do povo americano à época. Que, de certa forma, ecoa na nação hoje.
— Na verdade, não tive o propósito de fazer qualquer associação à situação que vivemos hoje. Mas, em se tratando da trajetória recente dos Estados Unidos, é impossível que isso não aconteça, mesmo inconscientemente. Quando fiz “Antiga alegria” (2006), por exemplo, estávamos no início da era Bush, mas pensávamos que aquele período obscuro iria passar. Mas já deu para perceber que isso não vai acontecer tão cedo, vamos depender da Suprema Corte para o resto da vida, não sei. Talvez eu esteja ficando velha — brinca a diretora, de 61 anos, nascida na Flórida. — Falhamos nos anos 1950, um período muito repressivo, e falhamos nos anos 1970, com a questão do Vietnã e o caso Watergate. Não que não tivéssemos falhado antes, mas ficou a percepção que, desde então, temos vivido um tipo de ideal falido.
Kelly está entre os poucos realizadores independentes que ainda conseguem manter uma produção regular, sem comprometer seus padrões.
A cineasta conta com o apoio de colaboradores famosos e constantes, como a atriz Michelle Williams, com quem fez quatro filmes (“Showing up”, “Certas mulheres”, “Wendy e Lucy” e “O atalho”). Em sua primeira experiência num set sob o comando da diretora, Josh O’Connor diz que “há algo muito especial em trabalhar com Kelly, uma gentileza na relação entre diretor e ator que não se encontra com frequência, e que acaba influenciando uma performance”. Apesar do momento promissor que o cinema americano atravessa, explicitado pelos Oscars de “Anora”, de Sean Baker, a cineasta não sonha com honrarias grandiosas e se diz satisfeita com a vida equilibrada entre os filmes e as aulas no Bard College.
— Fico muito feliz por Baker, sei que é maravilhoso ganhar prêmios, mas gosto da vida comum. Eu dou aulas para sobreviver, e gosto do meu trabalho. Quem concorre ao Oscar leva pelo menos oito meses de sua vida perseguindo aquele prêmio. Fico feliz por quem ganhar, mas imagina se for o seu último ano de vida e você o gastou correndo atrás de um prêmio? — diverte-se. — Gosto do equilíbrio que construí. Dou aulas um semestre por ano, no outro tento fazer filmes. Moro num apartamento pequeno, tomo um trem para chegar lá, e me hospedo numa pensão nos períodos de aula. Meus alunos me visitam no set. Meu plano de saúde, e é isso pelo que todos lutamos nos Estados Unidos, vem do meu trabalho como professora. Não faço parte da indústria do cinema.