Enzo (nome fictício), de 4 anos, usa o celular como qualquer adulto — ainda sem saber ler, o menino já sabe rolar a tela, gravar vídeos para o TikTok, baixar todos os jogos digitais que deseja usando o comando de voz. No começo, a família achava bonitinho, admirada com a inteligência dele. Sem ninguém ensinar, Enzo aprendeu até aquilo que os pais não sabiam. Um nativo digital mesmo. Mas não demorou muito para aparecerem as crises. O garoto chegou a quebrar dois aparelhos quando os pais tentaram controlar o uso, e o médico dele percebeu: os sintomas indicavam vício. No Brasil, 78% das crianças de 0 a 3 anos e 94% daquelas de 4 a 6 estão expostas diariamente a telas, segundo pesquisa da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. Ninguém sabe exatamente no que isso vai dar, mas as pistas são bastante preocupantes e será tema de “Infância ON/OFF”, a nova newsletter semanal do GLOBO, disponível neste link.
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— Não temos noção de efeito a longo prazo. É um experimento massivo e global que estamos vivendo. A curto prazo, os resultados são desastrosos. A criança pequena com excesso de telas tem perdas importantes de coordenação motora, linguagem e habilidade de soluções de problemas. Pela primeira vez na história, a gente pode estar criando uma geração de crianças com deficiência por causas ambientais, que são os dispositivos digitais — diz o pediatra e colunista do GLOBO Daniel Becker.
Isso significa que devemos voltar para as cavernas? Também não. Como tudo na vida, há idade certa para ter contato com a tecnologia, momento ideal e contextos adequados, aponta uma série consistente de especialistas no Brasil e mundo.
— Pode usar a tela desde que tenha interação com outras pessoas. Pode assistir a um filme, fazer uma videochamada, ler um e-book, brincar junto num joguinho. Nada disso traz prejuízo, se for feito interagindo com um adulto e no horário adequado — pondera Giana Bitencourt Frizzo, psicóloga coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Intervenção em Famílias com Bebês e Crianças, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Há, no entanto, alguns consensos claros de quando não recorrer às telas. Um deles é quando seu filho ficar entendiado ou nervoso. De acordo com Marie Danet, psicóloga que pesquisa o tema na Universidade de Lille (França), se acalmar é uma habilidade que se aprende.
— Quando o celular se torna o principal “calmante”, as crianças perdem oportunidades de praticar os processos mentais que promovem a tranquilidade, como inibir seus impulsos, lembrar regras simples e se adaptar quando ficam frustradas — diz.
Num estudo que Marie fez com crianças de 3 e 4 anos, ela descobriu que aquelas com maior dificuldade de prestar atenção, monitorar a si mesmas e ajustar o comportamento eram as mais propensas a receber um dispositivo “para se acalmar” pelos pais.
— Se for dar uma tela, planeje quando isso será feito e evite usar como um “chupeta de emergência”. Por exemplo: “É hora do vídeo enquanto eu cozinho” é melhor do que “Você está chorando demais! Pegue meu celular!”, para que o dispositivo não fique diretamente associado ao estresse.
De acordo com a mãe de Enzo, o menino aumentou o uso justamente durante uma grave crise familiar pela qual ela passou com o pai do menino. Nesse momento, o então companheiro, segundo ela, liberava o uso de forma irrestrita, e o garoto passava tardes no celular. Ela fazia o papel de “mãe chata” que tentava controlar.
— Sou muito cuidadosa com ele, medrosa. Para mim, é um bebezinho. Então, por exemplo, não deixo ele brincar na rua também. Só com a gente — diz.
Após sucessivas brigas por diversas desavenças, ela conta que foi expulsa de casa com a criança pelo ex. Em nova cidade, acolhida pela avó, a moça recomeçou a vida. Arrumou um novo emprego, passou a levar o menino à praia todo domingo, momento em que ele topa ficar sem nenhum aparelho digital, e decidiu dar fim às tardes de celular dele.
— Por orientação do médico, estou tirando aos poucos. Agora ele só usa entre 30 minutos e uma hora, do meu lado, depois que eu volto do trabalho. Ele é hiperativo e tem déficit de atenção. Por isso, é uma criança muito desafiadora — conta a moradora de Coruripe, em Alagoas.
O guia básico do que os pais precisam saber
Experiências digitais compartilhadas, como a TV, são mais indicadas do que as individuais. Converse sobre o conteúdo enquanto você estiver assistindo com seu filho. Ela também pode ser usada de apoio para brincadeiras, com vídeos de dança, por exemplo. Mas há limites de tempo e de horários. Nada uma hora antes de dormir ou durante a refeição.
Essas telas são mais individuais, possuem interatividade e com frequência oferecem conteúdo baseado em algoritmos fora do controle dos pais. Por isso, são menos indicadas. Chamadas de vídeos ou ler um ebook interativo juntos podem ser boas atividades em alguns momentos.
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Atenção: Minimize o brilho da tela e promova pausas visuais regulares
– Não dê um dispositivo próprio para crianças pequenas
– Os cuidadores devem definir a hora e o conteúdo a ser acessado
– Não tenha TV, nem guarde celular e tablet no quarto da criança
– Intercale as experiências digitais com não-digitais
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– Crianças entendem assistentes virtuais (como a Alexa) como adultos confiáveis, e os pais precisam ensinar que não são
– Fale sobre as suas experiências on-line, tanto positivas quanto negativas
– Use o interesse delas por tecnologia como um estímulo para experiências de aprendizagem e uma oportunidade para a conexão entre pares
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– Adultos distraídos pela tecnologia digital enquanto estão com os seus filhos são menos atentos e responsivos à criança
– As crianças devem aprender que podem tomar decisões ativas sobre como, onde e quando usar o celular
– Combine com a família e educadores como adultos devem usar o celular e a TV na frente das crianças
*Esta reportagem recebeu apoio do programa Early Childhood Reporting Fellowshipf, do Global Center for Journalism and Trauma

