O governo dos EUA entrou com um recurso nesta sexta-feira para não ter que cumprir uma ordem judicial determinando o pagamento imediato e integral dos benefícios de um programa de assistência alimentar usado por cerca de 40 milhões de americanos. No começo da semana, o presidente Donald Trump havia dito que o financiamento só seria liberado caso o Congresso chegasse a uma solução para a paralisia do governo federal — o “shutdown” —, e a Casa Branca avisou que mesmo se os pagamentos fossem feitos, eles iam demorar e sofreriam descontos.
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No pedido à Corte de Apelações, o Departamento de Justiça alega que não há “base legal” para forçar o presidente a encontrar fundos para o pagamento do Programa de Assistência Nutricional Suplementar (Snap, na sigla em inglês) em “estofados de sofás metafóricos”, versão americana do “dinheiro no colchão”. O recurso ainda rejeita o argumento de que Trump usou o tema para incendiar o debate sobre o “shutdown”, e que “negociações políticas em andamento” para a retomada do financiamento ao programa “foram interrompidas”, sem detalhar quando, como e com quem elas aconteceram.
“Esta liminar sem precedentes ridiculariza a separação de poderes. Os tribunais não detêm nem o poder de apropriar-se nem o poder de gastar”, afirma o recurso.
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Usado por mais de 40 milhões de americanos, o Snap tem origem nos auxílios oferecidos durante a Grande Depressão nos anos 1930, e se tornou uma política oficial em 1964, no governo de Lyndon Johnson. Todos os meses, os beneficiários — como pessoas de baixa renda, desempregados e em situação de vulnerabilidade —recebiam cupons, e e agora crédito em um cartão similar aos de débito, para comprar alimentos básicos. Em média, cada pessoa recebe US$ 187 por mês, mas o valor varia de acordo com critérios como idade, renda e grau de necessidades. Mensalmente, o programa depende de US$ 9 bilhões, incluindo as verbas para os benefícios e os gastos com sua administração.
Com o governo paralisado pelo “shutdown” e sem acordo no Congresso, o fundo para os pagamentos do Snap ficou sem dinheiro no fim de semana, mas uma ordem judicial emitida na sexta-feira passada determinou que o governo federal usasse fundos de emergência para manter os benefícios. O Departamento de Agricultura disse que usaria cerca de US$ 4 bilhões em caráter de urgência, mas que isso poderia atrasar “em semanas” os desembolsos, e que eles seriam menores do que os habituais.
— É melhor do que nada. Mas metade não nos alimenta o mês inteiro — disse ao New York Times Jeanne Nihart, mãe solteira que parou de trabalhar em 2010 por problemas de saúde, e que recebe US$ 436 por mês no Snap. — Não consigo justificar a compra de carne agora.
Diante do temor dos cortes, muitos correram para usar seus créditos e comprar o que pudessem nas lojas Mas para milhares de cidadãos do país mais rico do mundo que estavam sem créditos, a saída foi vasculhar o lixo.
— Peguei o máximo que pude. Nem me preocupei em verificar se era seguro — afirmou ao New York Times Arianna Payton, que depende dos auxílios estatais para sobreviver, e que disse ter encontrado em uma caçamba alguns pacotes de vegetais congelados, queijo e frutas.
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Os cortes também assustam os donos das lojas que aceitam o Snap e produtores rurais que fornecem seus alimentos a eles.
— Meu lucro líquido no final do ano já gira em torno de zero, como acontece com muitos agricultores neste país — lamentou Julia Asherman, uma produtora de frutas e vegetais que vende para estabelecimentos que dependem dos pagamentos feitos com o Snap, em entrevista ao New York Times.
Os bancos de alimentos, que fornecem itens básicos de graça, dizem que o volume de doações aumentou, mas que isso não será suficiente para substituir a ajuda federal.
— Nosso armazém está cheio. Temos comida suficiente para distribuir para 50 mil idosos nova-iorquinos — disse Beth Shapiro, que comanda a ONG Citymeals on Wheels, ao portal Politico. — Mas isso não atenderá à demanda. As organizações privadas sem fins lucrativos não podem suprir toda a lacuna que este governo está criando.
Como um elemento adicional de caos, Trump disse no começo da semana, em sua rede social, que os todos os pagamentos seriam suspensos até que “os democratas da esquerda radical” cedessem e votassem como quer a maioria governista. O principal ponto de atrito nas conversas é o corte de verbas para a saúde, que afetarão milhões de pessoas nos próximos 10 anos. A Casa Branca alegou que Trump não havia dito o que disse, e que as autoridades federais estavam cumprindo a ordem judicial da semana passada.
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Mas na quinta-feira, uma nova ordem judicial determinou que os pagamentos fossem feitos no valor total, sem descontos. Na liminar, o juiz John McConnell Jr, de Rhode Island, disse que o governo não agiu da forma adequada para garantir os desembolsos, e que agiu de forma “arbitrária e caprichosa” ao decidir pelo pagamento parcial. É essa decisão que está sendo questionada no tribunal de apelações.
“As pessoas estão passando por dificuldades há muito tempo”, disse McConnell. “Não efetuar os pagamentos a elas por mais um dia sequer é simplesmente inaceitável.”
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Ao mesmo tempo em que o Departamento de Justiça tentava reverter a obrigação de pagar os benefícios em seu valor total, o Departamento de Agricultura emitiu um comunicado aos estados — que recebem a verba e a distribuem aos beneficiários — dizendo que estava se preparando “para concluir os processos necessários para disponibilizar os fundos”.
O texto, obtido pelo New York Times, não menciona a ordem judicial e o recurso apresentado nesta sexta-feira. Alguns estados, como a Califórnia e o Wisconsin, anunciaram que já estão emitindo os benefícios em seu valor integral, mesmo diante do impasse federal.

