Se você é um rubro-negro de média quilometragem — jovem demais para ter vivido o supertime dos anos 1980, mas já com algumas temporadas de futebol nas costas —, sua relação com a Libertadores foi forjada no trauma. Acumularam-se tantos que você até perdeu as contas das noites de quarta-feira passadas em claro, entre a cólera e a apatia, buscando uma explicação na metafísica e ensaiando o discurso que entoaria no dia seguinte na escola ou no trabalho. De alguns times, você esperava muito, e esses te frustraram; de outros, não esperava nada, e deles não veio nada mesmo. Mas a rotina era tão infalivelmente dolorosa que demandava um termo-síntese: eram as flamengadas.
Ciente de que já não dói como antes, retorno a 2007, quando você foi surpreendido pelo modesto Defensor em Montevidéu e se revoltou com o apito de Héctor Baldassi no Maracanã. Ou a 2008, ano em que tudo parecia lindo, até um certo Cabañas virar seu maior inimigo da noite para o dia. Ou ainda a 2010, quando a Universidad de Chile de Montillo bombardeou os sonhos de um Império do Amor.
Nas temporadas seguintes, a flamengada chegou mais cedo, na fase de grupos — e com desfechos insuportavelmente cruéis. Afinal, em 2012, a imagem de Léo Moura reagindo ao vivo ao gol do Emelec não te parecia tão divertida quanto hoje. E, em 2014 e 2017, você buscou culpados convenientes, coitados, para expiar a ira das quedas vexatórias diante de León e San Lorenzo.
Não seria mesmo justo que a história rubro-negra nas Américas fosse escrita por Baldassis, Cabañas e Montillos. E em um ano só, o para-sempre-inigualável 2019, uma cavalaria tomou Lima — esta mesma que agora é sua segunda casa — e domou o destino. É fácil bradar tantos anos depois, mas você já sabia, bem antes de Gabriel Barbosa se fazer eterno em dois encontros com a rede, que aquele dia, daquele ano, não seria como os outros.
O tempo tem, sim, seus caprichos, e ele decidiu que seria necessário esperar o minuto-petkovic, o 43º do segundo tempo, para começar a coroação do conjunto perfeito do regente português Jorge Jesus, com Diego Alves, Rafinha, Rodrigo Caio, Pablo Marí, Filipe Luís, Willian Arão, Gerson, Everton Ribeiro, Arrascaeta, Bruno Henrique e Gabigol. Tudo tão perfeitamente encaixado, como a tabuada do 9, que escalar se tornou mais rápido que pensar.
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Sem a mesma magia, mas com inapelável eficiência, o desfecho se repetiu três anos mais tarde. O time do urgente Dorival Júnior era bem mais humano: nele, tinha espaço para o esforçado goleiro Santos, o folclórico lateral-direito Rodinei, o irregular volante Thiago Maia e sua dupla na contenção, João Gomes, ainda em ascensão. A manifestação do extraordinário se via na dupla de ataque, Gabigol e Pedro, pela primeira vez unidos para saciar o fetiche dos rubro-negros com 58 gols na temporada.
Número mais impressionante que esse só o dos 95% de aproveitamento na competição, o melhor da história da Libertadores — nunca uma equipe havia vencido todos os jogos do mata-mata. E, se a final contra o Athletico em Guayaguil pareceu um tanto blasé, foi porque você merecia essa paz.
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É verdade que houve outros dias inglórios, mas eles ficaram tão espremidos entre momentos de êxtase que não tiveram força para ganhar status de flamengada. Está bem, um deles doeu um “pitico” mais que os outros. Mas até ele foi exorcizado, num remake épico que demorou apenas quatro anos para ser escrito. De um escanteio, fez-se a cabeçada do rubro-negro Danilo; de um tetracampeonato, construiu-se uma marca inédita.
Se, durante uma daquelas noites em claro, São Judas Tadeu te prometesse que, dali a alguns anos, o seu Flamengo se tornaria o clube brasileiro mais vitorioso da história da Copa Libertadores, você teria reagido com sarcasmo. Afinal, flamengar era a sua rotina. Mas ele jamais te enganaria, e todo o seu desespero seria aliviado com a glória mais eterna. Hoje, flamengar é vencer.
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