Lançada em 1735, “Lndes galantes”, do francês Jean-Philippe Rameau, é uma ópera barroca passada em lugares que o público europeu da época considerava exóticos, como a Turquia, o Peru inca, a Pérsia e territórios indígenas americanos — o trecho mais célebre do espetáculo é o rondó “Dança do grande cachimbo da paz”. A montagem que estreou no dia 26 de novembro e se encerra nesta quinta-feira (4) no Theatro Municipal de São Paulo apostou nas danças urbanas, como o break e o voguing. De certa forma, a montagem acendeu um cachimbo da paz entre parte do público das óperas do Municipal: a releitura não gerou críticas, ao contrário de antecessoras que também foram modernizadas.
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O cineasta Josias Teófilo assistiu à estreia no camarote da prefeitura, na companhia do vereador Adrilles Jorge (União Brasil). Os dois aplaudiram com entusiasmo o espetáculo, que Teófilo descreveu ao GLOBO como “excelente”. É raríssimo ouvir um elogio dele ao que se passa no Municipal. Teófilo é membro do movimento conservador Artistas Livres e espécie de porta-voz dos críticos da Sustenidos, organização social que gere o teatro, que eles acusam de maltratar a ópera e usá-la para propagar mensagens políticas de esquerda.
Nos últimos anos, óperas do Municipal receberam pauladas que misturam questões estéticas e políticas. Detratores reclamam de montagens pouco inspiradas, encenadas por nomes estranhos ao gênero e excessivamente politizadas. O “Don Giovanni”, de Mozart, dirigido por Hugo Possolo desagradou ao substituir os recitativos da partitura (nos quais o canto se aproxima à fala para fazer a ação avançar) por frases como “respeita as mina”, “sem anistia” e provocações ao agronegócio.
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“O guarani” idealizado pelo pensador indígena Ailton Krenak em 2023 foi acusado de desrespeitar a obra de Carlos Gomes e se exceder na militância ao exibir uma faixa contra a tese do marco temporal para demarcações de terras. A montagem levou guaranis e seus cantos ao Municipal. Na ópera “Café”, com música de Felipe Senna e libreto de Mário de Andrade, foi o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra que subiu ao palco. A versão de Christiane Jatahy de “Nabucco” alterou a estrutura da ópera para se incluir um interlúdio final e relacionou a escravidão dos judeus na Babilônia, tema da ópera de Verdi, ao drama dos refugiados.
Para Teófilo, o problema é que quem prefere ver uma ópera sem grandes interferências ou atualizações fica sem opção, haja vista a reduzida oferta existente no país.
— Chamo isso de provincianismo temporal. Tudo é trazido para o presente, parece uma epidemia que impede as pessoas de olhar e compreender o passado — diz o diretor do documentário “O jardim das aflições”, sobre o guru conservador Olavo de Carvalho (1947-2022), que atribuiu o êxito de “Les indes galantes” ao fato de não ser uma produção original da Sustenidos, mas uma montagem da Ópera de Paris que faz parte da Temporada França-Brasil. — O identitarismo acha que as linguagens artísticas são instrumentos para mudar o mundo. Tudo na mão deles vira propaganda.
Quando a Sustenidos assumiu o Municipal, em 2021, os planos da nova gestão causaram apreensão em meios especializados — um edital para a programação de 2022 não trazia os termos “ópera” e “música clássica” (eles estariam subtendidos em “música”, justificou-se a OS).
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Integrantes dos corpos artísticos do Municipal, que opinaram sem querer ser identificados, estão divididos. Um diz que as leituras contemporâneas “iluminam aspectos antes pouco explorados” e que, se for para assistir a montagens tradicionais, “vejo no DVD da minha casa”. Outro reclama que as produções são “medíocres”, abrem pouco espaço para os artistas da casa e que “têm uma galera na gestão que não gosta de ópera, gosta de fazer política, de lacrar”.
A Fundação Theatro Municipal abriu na segunda-feira (1) um edital público para seleção da próxima organização social que vai gerir o teatro. A Sustenidos poderá concorrer.
Andrea Saturnino, diretora geral do Municipal, prefere não responder diretamente às críticas. Ela rebate que o teatro está sempre lotado e o público passa por uma renovação, e que as reclamações se concentram em “três ou quatro óperas de cerca de 30 já encenadas” e vêm de um grupo pequeno, porém capaz de fazer muito barulho.
— A ópera é sempre um encontro com o público, sempre fala ao contexto de hoje. Fazer uma ópera igual se fazia no século XIX seria fake, porque eu não tenho mais o público do século XIX — diz Saturnino.
O crítico musical Irineu Franco Perpétuo diz que essa discussão “é velha no mundo da ópera” e reverbera porque uma parcela do público do Municipal “é muito conservadora”.
— Tem gente que só vai aceitar ópera com aqueles figurinos antigos, de brechó, que não aceita nenhum outro tipo de montagem. É um tipo de visão museológica da ópera, mas no mau sentido — diz ele.
Além disso, a polarização política tem respingado no palco do Municipal. Em setembro, o prefeito Ricardo Nunes anunciou sua intenção de romper o contrato com a Sustenidos após um funcionário ter comemorado, nas redes sociais, o assassinato do influenciador trumpista Charles Kirk. Nesse clima, as críticas à suposta ideologização das óperas têm se tornado mais severas.
Anos atrás, diz Franco Perpétuo, produções que também dialogavam com o contemporâneo não causavam tanta polêmica. Críticos ouvidos pelo GLOBO afirmam que a atualização de obras clássicas é recorrente há pelo menos um século. O problema é quando a montagem quer extrair da obra um discurso político a que ela não se presta.
— Às vezes, percebe-se um desejo de “corrigir” a ópera, de palestrar. Isso é um pouco condescendente com a plateia, é como se você não acreditasse que a ópera, sozinha, seja capaz de conscientizar as pessoas e procura muletas para levar o público a determinada conclusão. Nesse caso, você tem a palestrinha, mas não a fruição — afirma o crítico Márvio dos Anjos, ressaltando que algumas releituras funcionaram bem, como a de “Porgy and Bess”, idealizada por Grace Passô, que colocou motoboys no palco e apostou na estética da periferia de São Paulo.
Para o crítico, goste-se ou não do que está no palco, o fato é que as produções do Municipal têm gerado discussão. E isso já deve ser motivo para celebrar:
— O Municipal está lotado e está sendo debatido pela sociedade. Não é todo teatro que é assim, vivo.

